·
Farei, neste texto um pouco longo, algumas
reflexões sobre as masculinidades femininas e peço à leitora e ao leitor de
nosso blog que me acompanhe, sobretudo na parte inicial em que dialogo com um
importante autor dessa área de estudos.
Tecerei comentários de inspiração
culturalista, que pretendem mobilizar um referencial crítico vinculado aos
estudos queer, e tal procedimento não pode querer detectar o início de algo, já
que o próprio momento do início foi arruinado pela história, não lhe sendo
possível ser recuperado como totalidade, mas sim reconstituído, e nesse mesmo
momento, criado pelo estudioso/a que a esse trabalho se dedica. Ressalva feita
para aqueles/as que pretendiam encontrar aqui uma etimologia da palavra goby.
Capa do livro "Female Masculinity",
dx pesquisadorx J. Halberstam
Essa foi a reflexão que me ocorreu após ser
indagado sobre a origem da palavra goby por uma companheira do movimento LGBT
da cidade de Vitória da Conquista/BA. Vale dizer que eu não conhecia essa
palavra antes de chegar à Bahia, talvez um indício de que tal vocábulo, que já
tomei como pertencente ao repertório pajubá (para saber mais sobre o pajubá,
clique aqui), possivelmente tem uma localização geográfica baiana; e foi por uma
dessas coincidências da vida, já que tenho por sentado que a vida não passa de
contingências, tropeços e encontros malucos, que, nesse ínterim, enquanto era
provocado a escrever sobre a palavra goby, estava lendo dois capítulos do
livro Masculinidad femenina (título em espanhol), do
pesquisador J. Jack Halberstam (nesse livro, ele ainda assinava como Judith
Halberstam), em especial o primeiro capítulo, que trata exatamente de
introduzir os argumentos do autor no que se refere à possibilidade de a
masculinidade existir – ou nos termos de Judith Butler, ser performada, a despeito
do corpo do homem (o bio-homem, com pênis).
Esse pesquisador vai afirmar, com o auxílio de
alguns estudos disparadores sobre masculinidade vivenciada por mulheres, que,
no filme “007 contra Goldeneye” – e poderíamos estender o exemplo para todos os
filmes da franquia –, a masculinidade do agente Bond, o protagonista da saga,
não tem nada de concreta em si mesma, estando dependente, a todo o momento, de
acessórios, ou próteses de masculinidade: talvez um relógio que dispara raios
laser, um paletó blindado, um cadarço letal etc. Halberstam demonstra, de
maneira convincente, que Bond termina por se apresentar como “uma paródia ou
uma revelação da norma”, e que quem consegue interpretar a masculinidade de uma
forma mais contundente é a personagem “M”, a chefe mandona que “encabeça” – uma
cara palavra do repertório patriarcal, as missões do agente (lembrem-se, por
exemplo, do discurso religioso que afirma ser o homem “o cabeça” da mulher).
Em seguida, Halberstam traz à tona o exemplo
dos “chicazos”, palavra costumeiramente utilizada em contextos de fala
espanhola, para designar “meninas ou adolescentes com características físicas e
aspecto masculino, com um comportamento parecido ao dos meninos, ou que realiza
atividades que se supõem próprias de meninos” (p. 27, a tradução é minha). Os
“chicazos”, afirma, permitem que os modelos hegemônicos de masculinidade sejam
postos sob suspeita, tensionando a normatividade de gênero, quer dizer, como
devem ser os gêneros. E um parêntese é necessário.
Há uma tendência a crer que, em se comparando
as meninas masculinas com os meninos femininos, aquelas seriam mais toleradas,
já que características masculinas em corpos de mulheres são valorizadas. Por
exemplo, uma mulher que seja decidida, forte, valente, qualidades comumente
reputadas ao masculino, é desejável e socialmente valorizado. Contudo,
Halberstam sustenta que é na adolescência que se dá, de forma mais pontual,
posto que é nesse período da vida que se processa a puberdade, o policiamento
de gênero, quando a menina-mulher precisa ser moldada, ensinada a desempenhar
suas futuras tarefas como esposa e mãe, a cuidadora do lar, o lugar da família
(e sobre isso, vale a leitura do texto de Fábio Fernandes). E aqui já vemos que a feminilidade nada tem de
natural, mas sim é moldada, ensinada e reforçada durante esse período da vida
(e não só durante a adolescência, pensem, por exemplo, nos reiterados discursos
midiáticos que a indústria dos cosméticos faz com vistas a instituir um único
modelo de mulher, aquela sempre bela e perfumada).
Jack Halberstam, professor e pesquisador queer
Não me interessa aqui apontar se são as
meninas masculinas ou os meninos femininos quem mais desestabiliza a matriz de
inteligibilidade dos gêneros e das sexualidades; vale dizer, entretanto, que em
uma sociedade organizada a partir de relações em torno do falo, do poder e da
autoridade do homem, calcada no patriarcalismo – e, como outro parêntese, a
força do patriarca não diminuiu, como se vem alentando em alguns círculos dos
movimentos sociais, antes ganhou novas máscaras, ou velhas máscaras novamente envernizadas
–, meninos femininos são sobremaneira indesejáveis e problemáticos.
De qualquer maneira, “as sapatinhas” ou
lekinhas, pra fazer uso de algumas expressões pertencentes ao repertório do
pajubá, os “chicazos”, apontam não para um desejo de usurpar o poder reputado
ao homem, tampouco para um símbolo de patologia, as “invertidas”, mas, antes,
para outras possibilidades de masculinidades, descoladas do corpo do bio-homem,
cuja maior potência reside na intervenção nos processos de outorgar um gênero a
um corpo e, em última instância, apreender a humanidade de alguém, torná-la
inteligível.
Essas observações sobre as lekinhas valem,
também, para as mulheres masculinas, cuja visão em muitos círculos,
infelizmente alguns deles gueis e lésbicos, é, ainda, hostilizada. E acerca
disso vale a pena abrir um outro parêntese. O movimento feminista, por um largo
tempo, visando a um integracionismo de pinta burguesa, rejeitou as mulheres
masculinizadas, as machonas, caminhoneiras, scania etc. A rejeição se dava
tanto por esse motivo, o da assimilação, o de uma maior aceitação das lésbicas
na sociedade e do próprio movimento LGBT como um todo, quanto por um medo que
os movimentos de lésbicas tinham de terem suas identidades sexuais associadas à
doença, ao conceito de inversão, conceito cunhado no centro dos discursos
médicos coincidentemente com o conceito de homossexualidade masculina no final
do século XIX e início do século XX. Movimento similar ocorreu (ocorre ainda?)
nos círculos de gueis visando exatamente a obter uma aceitabilidade mais
ampliada da sociedade em relação às relações homossexuais.
O investimento em pautas como o casamento
igualitário e a adoção de crianças por esse tipo de casal são disso indícios.
Nessa perspectiva, é desejável que as lésbicas sejam femininas, se possível,
super femininas, demonstrando para a normalidade sexual que a essência-mulher,
o ser mulher, está no corpo a despeito da lesbianidade, e que os gays sejam
masculinos, “homens de verdade”, preservando, também, o estatuto social do
macho.
A masculinidade feminina, nesse sentido,
irrompe como um turbilhão de águas para retirar a feminilidade e a
masculinidade de “seus lugares”, indicando a possibilidade de um leque muito
grande de maneiras de experienciar os gêneros (eis o som do leque: trah!).
Halberstam mobiliza um repertório teórico de filiação pós-estrutural, com o
qual me identifico, como apontei no início do texto, o qual nomeia a
masculinidade do homem branco, burguês e heterossexual não como “hegemônica”,
mas sim como “dominante”, e as masculinidades possíveis, como é o caso das
masculinidades femininas, de “alternativas”. Nesse ponto, vale a pena explicar
as tênues, mais importantes, diferenças entre esses termos.
As masculinidades femininas tomadas enquanto
“alternativas” apontam, e aqui recorro a Foucault, para desenvolver o
argumento, não para um desejo de tomar a masculinidade hegemônica para si, de
reivindicá-la enquanto poder e privilégio, mas sim para proporem, com a força
da performance, possibilidades outras, não cobiçando os privilégios de
dominação próprios do patriarca. Perceber as mulheres masculinas, portanto,
como pessoas desejosas do lugar do homem burguês e heterossexual é reduzir as
masculinidades femininas a simples cópias, simulações, da masculinidade
dominante. Essa masculinidade, a dominante, nada mais é do que exatamente um
modelo dominante, cuja genealogia pode ser apontada na história, portanto, não
tendo nada de natural ou legítimo. Se tem chão histórico, refuta-se a verdade
metafísica.
Feitas essas reflexões, o e a leitor/a deve
estar pensando: e as goby? Bem, as pessoas que se identificam com essa palavra,
uma categoria identitária, já que, como me narrou a companheira de Vitória da
Conquista, parte do movimento reivindicou-se goby, demonstram muito mais o
desejo de romperem as fronteiras das identidades políticas centradas no desejo
e na prática sexual – a identidade lésbica, que apenas deflagarem a emergência
de um novo movimento ou uma nova composição na sigla LGBT. As goby, como tenho
observado em conversas com amigas que se identificam como lésbicas, e também a
partir de rápida pesquisa na internet, sem ainda um rigor típico de uma
pesquisa acadêmica, tem revelado que goby tem uma potência política muito
interessante, e talvez mais agregadora, pois chama para si não apenas as
mulheres lésbicas masculinas, mas também aquelas que, declaradamente
heterossexuais, rejeitam a feminilidade enquanto intrínseca a seus “corpos
biológicos”. Isso demonstra, portanto, que o gênero pode ser experienciado,
apesar do desejo e da prática sexual.
Se no caso da homossexualidade masculina o que
está em xeque, enquanto violação da normatividade sexual, é mais uma questão de
feminilidade, isto é, “pode até ser viado mas que seja homem!”, no que se
refere às goby, o que se destaca é a masculinidade poder ser vivenciada para
além da lesbianidade, o que desnaturaliza o “corpo biológico” da mulher da
obrigatoriedade da feminilidade. É uma potência política fantástica essa a da
goby! E aí provoco: poderiam os meninos gueis afeminados serem goby? Poderiam
eles gozar da prerrogativa de, quando desejável, performarem a masculinidade,
ou é a feminilidade uma obrigatoriedade em seus corpos?
Boas reflexões e um beijo bem masculino em
todxs xs goby do Brasil!
Simone Brandão -
Professora Assistente da UFRB, Doutoranda do Programa Multidisciplinar de Pós
Graduação em Cultura e Sociedade/UFBA, Pesquisadora do CUS/UFBA.
Há 18 anos, no I Seminário Nacional de Lésbicas, realizado no Rio de
Janeiro, ativistas estabeleceram a data de 29 de agosto como o Dia da
Visibilidade Lésbica. Um dia para tornarem-se visíveis e paradoxalmente lembrar
a invisibilidade vivida por mulheres lésbicas na sociedade, mas também para
rememorar a violência lesbofóbica a que estão submetidas diariamente e,
principalmente, reafirmar sua existência e diferença.
Para pensarmos a extensão dessa invisibilidade que tratamos, podemos
inicialmente focar nossa reflexão na construção discursiva sobre a existência
lésbica. Dentro dos campos de gêneros e sexualidades, por exemplo, uma grande
dificuldade para as pessoas estudiosas da lesbianidade é a produção acadêmica,
ainda restrita, sobre a temática. Penso que um dos fatores determinantes para a
existência escassa de trabalhos nessa área é o fato de que durante um longo
período a lesbianidade foi tratada como um apêndice da homossexualidade gay, um
seu quase sinônimo, o que significa dizer que os estudos discutiam as
homossexualidades de forma quase que homogênea, gerando, de acordo com Rich
(2010) e Swain (2004), um apagamento da existência lésbica na academia.
Esse fator contribuiu para conferir, portanto, invisibilidade à
lesbianidade e, por conseguinte, promoveu pouca produção sobre o tema, além de
ter favorecido a publicação de trabalhos que tratam dessa experiência de forma
enviesada, na medida em que falam a partir de um olhar masculino que se faz
presente na maioria das produções sobre as homossexualidades e que não capturam
as especificidades do universo lésbico.
Foi somente após a década de 1970, com o surgimento de ONGs de lésbicas,
que se iniciou o processo afirmativo da identidade lésbica, intensificando-se
na década de 1990 e contribuindo para um crescimento nas produções sobre
lesbianidade que falam a partir do e sobre o universo lésbico. Esse processo
também vem se dando com o movimento trans, na medida em que se percebe a
necessidade de se discutir políticas e produzir conhecimento considerando
também as peculiaridades de cada grupo.
Podemos afirmar, portanto, que historicamente esse incremento nos
trabalhos acadêmicos sobre a lesbianidade possui nexo com a autonomização do
movimento lésbico em relação ao movimento homossexual ou da identidade lésbica
em relação às outras identidades políticas.
Não queremos com essas observações essencializar as identidades ou
afirmar nenhuma supremacia da produção endógena lésbica, nem deixar de
considerar a pluralidade de experiências dos grupos identitários, mas
importa-nos situar a necessidade de se tratar a lesbianidade a partir de um
olhar não impregnado de valores e cultura masculina, colonizado, que atravessa
as publicações sobre as homossexualidades de uma forma geral, reproduzindo
especificidades do universo gay sem dar visibilidade às peculiaridades do mundo
lésbico.
Essa crítica não é inédita, pelo contrário, ela foi um dos motes
centrais da autonomização dos movimentos lésbicos em relação aos movimentos
gays, expressos inclusive em peças de divulgação, como a frase impressa no
postal da ONG Nuances (Grupo Pela Livre Orientação Sexual), do Rio Grande dos
Sul, e reproduzida em artigo de Almeida (2008): “Não somos meninas gueis, somos
lésbicas”.
Então é importante que as produções sobre lesbianidade sejam pensadas
não a partir de um discurso que constrói e significa o universo masculino, que,
por sua vez, também permeia grande parte das produções sobre a homossexualidade
gay, mas que sejam frutos de uma postura crítica e questionadora sobre a heterocentricidade,
e da identificação entre mulheres (Rich, 2010) e não destas com o universo
heterossexual normalizador, hierárquico e classificatório.
O risco, portanto, é o de, como acontece com a produção literária e
acadêmica feminista sobre a lesbianidade, se ter por referência central o
homem, reproduzindo a normalidade das relações heterossexuais e reforçando
assim a heterossexualidade como uma instituição política que desempodera as
lésbicas, posto que, na perspectiva da heterocentricidade, as lésbicas possuem
o lugar da subalternidade (Rich, 2010).
O que queremos chamar a atenção, como ponto de partida da reflexão que
aqui propomos, é a importância de conferir à discussão sobre lesbianidade um
olhar menos impregnado da perspectiva gay-masculina-patriarcal. Pelo risco
mesmo de ser uma perspectiva alicerçada em valores masculinos e que
invisibilizam nuances próprias da lesbianidade, Invisibilizando assim as
lésbicas dentro do próprio universo LGBTT.
Este seria então um primeiro ponto, a meu ver potente, a se investir na
busca por se promover a visibilidade lésbica na medida em que tal conhecimento
passa a ser produzido a partir de um discurso próprio do universo lésbico,
capaz de empoderar sexualidades dissidentes do mundo de dominação masculina
(Bourdieu, 2003, p.18).
É nesse mundo masculino-branco-heterossexual-cristão, em que a
discriminação, o preconceito e a violência se expressam em práticas cotidianas
fundamentadas em valores e entendimentos enviesados sobre a diversidade sexual,
que se naturaliza a heterossexualidade, como se essa fosse a única, possível,
correta e normal expressão da sexualidade e como se todas as pessoas nascessem
a ela designadas. É, pois, essa heterossexualidade naturalizada que violenta e
invisibiliza a lesbianidade.
E estar invisível, em qualquer lugar ou situação, significa não ter, na
sociedade, um sentido ou uma função reconhecida. Representa não se enquadrar
nas normatizações pré-estabelecidas socialmente, o que poder expressar, a
depender do rigor dessa normatização, ser uma abjeção perturbadora da ordem
estabelecida, o que justificaria, para essa moral, ações abomináveis e
violentas como o estupro corretivo, praticado contra lésbicas.
Assim, a quem está invisível só é permitido ver, mas não tomar partido
do mundo ou mesmo decidir, participar, se empoderar. Resta às pessoas
invisibilizadas a exclusão, a submissão. Esta é a realidade da maioria das
lésbicas em nossa sociedade: invisibilidade provocada por negação dessas
existências desde a família até as demais instituições presentes na sociedade.
E o que rege tais relações? É a moralidade, que desnaturaliza as
sexualidades dissidentes a partir da noção cristocêntrica do pecado,
naturalizando a heterossexualidade e considerando abjetas as demais expressões
da sexualidade e de identidades de gênero. Dentro dessa lógica, as instituições
tendem a garantir a emergência apenas de comportamentos sexuais considerados
adequados para o padrão heteronormativo, qual seja homem X mulher. As
sexualidades que se inscrevem fora dessa norma são consideradas desviantes e
são reprimidas pois contrariam o discurso dominante.
Toda essa análise reforça a necessidade da capacidade de agência das
lésbicas ou das demais sexualidades não normativas, para transgredir o jugo
disciplinador imposto. Para tanto é preciso se ter uma leitura do discurso
dominante e se tornar potência para desestabilizá-lo, desconstruí-lo e
desconstruir não é simplesmente destruir mas ler o discurso em outras bases. Nesse
sentido, a construção de um conhecimento que empodere as lésbicas e também a
promoção de sua visibilidade se constituem em estratégias fundamentais para
enfrentar a invisibilidade perversa que, presente na lesbofobia, impede a
liberdade no desenvolvimento das sexualidades e subjetividades lésbicas, além
da construção do respeito à lesbianidade e a efetivação dos direitos
correlatos.
Então, vamos tirar o preconceito e o moralismo do caminho e lesbianizar
sem pudor!
Referências Bibliográficas:
ALMEIDA, Gláucia; HEILBORN,
Maria Luiza. Não somos mulheres gays: identidade lésbica na visão de ativistas
brasileiras. Gênero, Niterói, v. 9, n. 1, p. 225-249, 2. sem. 2008. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
RICH, Adrienne. “Heterossexualidade compulsória e existência lésbica”. In: Bagoas, revista de estudos gays. Natal, EDFRN, volume 4, número 5, jan/jun de 2010, p. 17 a 44.
SWAIN, Tânia Navarro. O que é lesbianismo. São Paulo: Brasiliense, 2004.
Nenhum comentário:
Postar um comentário