Para
pensamento político tradicional, dois conceitos são complementares. Mas Europa
demonstra algo que Max Weber já intuia: liberdade não pode florescer sob
leis de mercado
Vamos
começar com uma citação de um ensaio sobre a democracia burguesa na Rússia,
escrita em 1906, após a derrota da primeira revolução, de 1905:
“É
profundamente ridículo acreditar que existe uma afinidade eletiva entre o
grande capitalismo, da maneira como atualmente é importado para a Rússia, e bem
estabelecido nos Estados Unidos (…), e a ‘democracia’ ou ‘liberdade’ (em todos
os significados possíveis da palavra); a questão verdadeira deveria ser: como
essas coisas podem ser mesmo ‘possíveis’, a longo prazo, sob a dominação
capitalista?” [1]
Quem é o
autor deste comentário perspicaz? Lenin, Trotsky ou, talvez, Plekhanov? Na
verdade, ele foi feito por Max Weber, o conhecido sociólogo burguês.
Apesar de Weber nunca ter desenvolvido essa ideia, ele está sugerindo aqui que
existe uma contradição intrínseca entre o capitalismo e a democracia.
A
historia do século XX parece confirmar essa opinião: em muitos momentos, quando
o poder da classe dominante pareceu ameaçado pelo povo, a democracia foi jogada
de lado como um luxo que não pode ser mantido, e substituída pelo fascismo — na
Europa, nos anos 1920 e 1930 — ou por ditaduras militares, como na América
Latina, entre os anos 1960 e 1970.
Por
sorte, esse não é o caso da Europa atual, mas temos, particularmente nas
últimas décadas, com o triunfo do neoliberalismo, uma democracia de
baixa intensidade, sem conteúdo social, que se reduziu a uma concha vazia.
É claro que ainda temos eleições, mas elas parecem ser de apenas um partido, o
PMU, Partido do Mercado Unido, com duas variantes que apresentam diferenças
limitadas: a versão de direita neoliberal e a de centro-esquerda social
liberal.
O
declínio da democracia é particularmente visível no funcionamento oligárquico
da União Europeia, onde o Parlamento Europeu tem muito pouca influência,
enquanto o poder está firmemente nas mãos de corpos não eleitos, como a
Comissão Europeia ou o Banco Central Europeu. De acordo com Giandomenico
Majone, professor do Instituto Europeu de Florença, e um dos teóricos
semioficiais da UE, a Europa precisa de “instituições não-majoritárias”. Ou
seja, “instituições públicas que, propositalmente, não sejam responsáveis nem
diante dos eleitores, nem de seus representantes eleitos”: essa é a única
maneira de nos proteger contra “a tirania da maioria”. Em tais instituições,
“qualidades tais quais expertise, discrição profissional e
coerência (…) são muito mais importantes que a responsabilidade democrática e
direta” [2]. Seria difícil imaginar uma desculpa mais descarada da natureza
oligárquica e antidemocrática da UE.
Com a
crise atual, a democracia decaiu a seus níveis mais baixos. Em um recente
editorial, o jornal francês Le Figaro escreveu que a situação
é excepcional, e explica por que os procedimentos democráticos não podem ser
sempre respeitados; apenas quando voltarmos aos tempos normais, poderemos
restabelecer sua legitimidade. Temos, então, um tipo de “estado de exceção”
econômico/político, no sentido que descreveu Carl Schmitt. Mas quem é o
soberano que tem o direito de proclamar, de acordo com Schmitt, o estado de
exceção?
Por algum
tempo, entre 1789 e a proclamação da República Francesa, em 1792, o rei teve o
direito constitucional de veto. Não importavam as resoluções da Assembleia
Nacional, ou quaisquer que fossem os desejos e aspirações do povo francês: a
última palavra pertencia a Sua Majestade.
Na Europa
de hoje, o rei não é um Bourbon ou Habsburgo: o rei é o Capital Financeiro.
Todos os atuais governos europeus — com a exceção do grego! — são funcionários
deste monarca absolutista, intolerante e anti-democrático. Quer sejam de
direita, “extremo-centro” ou pseudoesquerda, quer sejam conservadores,
democratas cristãos ou social-democratas, eles servem fanaticamente ao poder de
veto de Sua Majestade.
O
soberano absoluto e total hoje, na Europa, é, no entanto, o mercado financeiro
global. Os mercados financeiros ditam a cada país os salários e aposentadorias,
os cortes em despesas sociais, as privatizações, a taxa de desemprego. Há algum
tempo, eles nomeavam diretamente os chefes de governo (Lucas Papademos na
Grécia e Mario Monti na Itália), escolhendo os chamados “experts”, que eram
servos fiéis.
Vamos
olhar mais atentamente a alguns desses tais todos-poderosos “experts”. De onde
eles vêm? Mario Draghi, chefe do Banco Central Europeu, é um antigo
administrador do banco internacional de investimentos Goldman Sachs; Mario
Monti, ex Comissário Europeu, também é um antigo conselheiro da Goldman Sachs.
Monti e Papademos são membros da Comissão Trilateral, um clube muito seleto de
políticos e banqueiros que discutem estratégias internacionais. O presidente
desta comissão é Peter Sutherland, antigo Comissário Europeu, e antigo
administrador no Goldman Sachs; o vice-presidente, Vladimir Dlouhr, antigo
Ministro da Economia tcheco, é agora conselheiro na Goldman Sachs para a Europa
Oriental. Em outras palavras, os “experts” que comandam a “salvação” da Europa
da crise foram funcionários de um dos bancos diretamente responsáveis pela
crise financeira iniciada nos Estados Unidos, em 2008. Isso não significa que
existe uma conspiração para entregar a Europa à Goldman Sachs: apenas ilustra a
natureza oligárquica dos “experts” de elite que comandam a UE.
Os
governos da Europa estão indiferentes aos protestos públicos, greves e
manifestações maciças. Não se importam com a opinião ou os sentimentos da
população; estão apenas atentos — extremamente atentos — à opinião e
sentimentos dos mercados financeiros e seus funcionários, as agências de
avaliação de risco. Na pseudodemocracia europeia, consultar o povo em um
referendo é uma heresia perigosa, ou pior, um crime contra o Deus Mercado. O
governo grego, liderado pelo Syriza, a Coalizão da Esquerda Radical, foi o
único que teve coragem para organizar tal consulta popular.
O
referendo grego não tinha apenas a ver com questões fundamentais econômicas e
sociais, foi também e acima de tudo sobre democracia. Os 61,3% de gregos que
disseram não são uma tentativa de desafiar o veto real das
finanças. Esse poderia ter sido o primeiro passo em direção à transformação da
Europa, de monarquia capitalista a república democrática. Mas as atuais
instituições da oligarquia europeia têm pouca tolerância à democracia.
Imediatamente puniram o povo grego por sua tentativa insolente de recusar a
austeridade. A “catastroika” está de volta à Grécia com uma vingança, impondo
um programa brutal de medidas economicamente recessivas, socialmente injustas e
humanamente insustentáveis. A direita alemã fabricou este monstro, e forçou ao
povo grego com a cumplicidade de falsos “amigos” da Grécia (entre outros, o
presidente francês, François Hollande, e o primeiro-ministro da Itália Matteo
Renzi).
* * *
Enquanto
a crise agrava-se, e o ultraje público cresce, existe uma crescente tentação,
por parte de muitos governos, de distrair a atenção pública para um bode
expiatório: os imigrantes. Deste modo, estrangeiros sem documentos, imigrantes
de países não-europeus, muçulmanos e ciganos estão sendo apresentados como a
principal ameaça aos países. Isso abre, é claro, enormes oportunidades para
partidos racistas, xenófobos, semi ou completamente fascistas, que estão
crescendo, e já são, em muitos países, parte do governo — uma ameaça muito
séria à democracia europeia.
A única
esperança é a crescente aspiração por uma outra Europa, que vá além das
políticas de competição selvagem e austeridade brutal, e das dívidas eternas a
serem pagas. Outra Europa é possível — um continente democrático, ecológico e
social. Mas não será alcançado sem uma luta comum das populações europeias, que
ultrapasse as barreiras étnicas e os limites estreitos do Estado-nação. Em
outras palavras, nossa esperança para o futuro é a indignação popular, e os
movimentos sociais, que estão em ascensão, particularmente entre os jovens e
mulheres, em muitos países. Para os movimentos sociais, está ficando cada vez
mais óbvio que a luta pela democracia é contra o neoliberalismo e, em última
análise, contra o próprio capitalismo, um sistema antidemocrático por natureza,
como Max Weber já apontou, cem anos atrás.
[1] Max Weber, «Zur Lage der bürgerlichen
Demokratie in Russland»,Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik,
Band 22, 1906, Beiheft, p. 353.
[2] Citado in Perry Anderson, Le Nouveau
Vieux Monde, Marseile, Agone, 2011, pp. 154,158.
FONTE:
Outras Palavras.
Acessado em 01-09-2015.
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