Soldado aprisionado no Rio narra como polícias militares constroem, desde a escola de “preparação”, cultura de violência, desprezo pelos pobres e promiscuidade com crime
Por Ciro Barros, na Pública (26 de julho de 2015).
Com quase dois metros de altura, mais
de 100 quilos entre músculo e alguma gordura, o ex-soldado da Polícia Militar
do Rio de Janeiro Rodrigo Nogueira Batista, de 33 anos, é um “monstro” como a
gíria popular classifica os brutamontes do tamanho dele. A orelha esquerda
estourada pelos tatames de jiu-jitsu e o nariz meio torto ajudam a compor a
figura do ex-PM preso em Bangu 6 (Penitenciária Lemos de Brito). Essa prisão,
destinada prioritariamente a ex-policiais, bombeiros, agentes penitenciários e
milicianos, faz parte do Complexo Penitenciário de Bangu, bairro da zona oeste
do Rio de Janeiro. Preso desde novembro de 2009, Rodrigo foi condenado pela
Justiça Militar a18 anos por furto qualificado, extorsão mediante sequestro e atentado
violento ao pudor e a 12 anos e 8 meses no Tribunal do Júri por tentativa de homicídio triplamente qualificado.
Segundo a condenação judicial,
Rodrigo e seu então parceiro, o cabo Marcelo Machado Carneiro, abordaram a vendedora
ambulante Helena Moreira na descida do Morro de São Carlos, onde ela morava.
Ela iria à estação de metrô Estácio, no bairro do Estácio de Sá, Rio de
Janeiro, e levava na bolsa R$ 1.750. Os policiais a revistaram, roubaram a
quantia em dinheiro e sequestraram Helena pensando que ela fosse mulher de
algum traficante. Segundo a decisão do juiz Jorge Luiz Le Cocq D’Oliveira, os
PMs mantiveram a vendedora por quatro horas sob cárcere privado, onde ela foi
agredida e “constrangida a praticar atos libidinosos” antes de ser atingida por
um tiro de fuzil no rosto, que teria sido disparado por Rodrigo. Ainda segundo
a sentença, a vítima se fingiu de morta após a sessão de tortura e foi à
delegacia dar queixa. Rodrigo recorreu da sentença no Superior Tribunal de
Justiça (STJ). Ele afirma não ter cometido o crime pelo qual foi condenado, mas
diz com todas as letras que “não é inocente”, cometeu “outros erros” como
policial, que ele não quer detalhar para não complicar sua situação.
Ele é autor do livro “Como Nascem os
Monstros”, da Editora Topbooks, um brutal “romance de não-ficção”, em que
mistura suas próprias histórias às histórias de outros colegas, casos de
repercussão na crônica policial e “causos” da corporação. No livro, Rodrigo
descreve com consistência a transformação de um jovem comum, com vagos ideais
de defesa da sociedade e combate ao crime, em um criminoso fardado que usa de
sua posição para matar, sequestrar, extorquir e prestar serviços à milícia. O
resultado é um quadro aterrador de achaque de oficiais aos recrutas, corrupção
dos batalhões e uma ácida interpretação da visão da sociedade em relação à
polícia.
“Nenhum, eu digo e afirmo, nenhum
recruta sai do CFAP [Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças] pronto
para empunhar uma arma no meio da rua”, afirma categoricamente o ex-PM. Mas
logo ele vai aprender que tem que pagar para tirar férias, para ficar nos
melhores postos da corporação e assistir aos oficiais lucrando com a venda de
policiamento. “No Morro dos Macacos, ninguém entrava sem autorização do
comando. Se um carro fosse roubado, e o bandido fugisse com o veículo para o
interior da comunidade, sorte dele (…). Acredite, se um policial adentrar uma
comunidade sem autorização do comando, não importa o motivo, ele responderá por
descumprimento de ordem. O morro que está ‘arregado’ não tem tiro nem morte,
basta estar com o carnê em dia”, denuncia.
“Posso garantir que, ao ingressar na
corporação, ninguém acredita que um dia vai sequestrar alguém, roubar seu
dinheiro, matar essa pessoa e atear fogo ao corpo. Pode até ter uma
vontadezinha de atirar em algum bandido (…), mas pensar em tamanha crueldade é
impossível”, narra Rodrigo no livro. “Embaixo da casca monstruosa que envolve
esse tipo de criminoso, o policial militar que erra, também havia (há?) um
homem que um dia estudou, passou no concurso, se formou, fez um juramento e
marchava com garbo. Deu orgulho à sua família e, pelo menos uma vez, arriscou
morrer pela sociedade.”
Tenho diante de mim um monstro:
alguém condenado por um crime hediondo, mas, na própria metáfora de Rodrigo,
alguém que também é produto de mecanismos cruéis de uma corporação cruel. Ligo
o gravador. Essa é a versão dele.
Como você entrou na Polícia Militar?
Entrei na Marinha com 18 anos, fui aprendiz de marinheiro em Santa
Catarina. Sempre gostei muito da vida militar. Logo no começo eu já me desiludi
com o militarismo na Marinha. Eu sentia falta de realmente me sentir útil.
Quando eu tive que escolher uma especialização na Marinha, não consegui passar
nos exames para mergulhador. Sobraram algumas áreas bem ruins e aí resolvi
fazer o curso da polícia. Passei no primeiro concurso que eu fiz, pedi baixa da
Marinha e fiquei aguardando. No fim, eu fui pra polícia.
Mais uma vez veio a desilusão. Assim que nós nos apresentamos lá no CFAP
(Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças da Polícia Militar), onde a
maioria dos praças são treinados. O CFAP deveria ser um centro de excelência,
mas para você ter uma ideia, no primeiro dia não teve nem almoço pros recrutas.
No primeiro dia tivemos só meio expediente e o comando já liberou todo mundo.
Você conta no livro que ali começou uma degradação de um rapaz que tinha
um ideal, queria defender a sociedade, e começou a tomar contato com a
violência e a corrupção na corporação. Como foi isso pra você?
O processo de perversão começa no início da formação. Quando cheguei no
CFAP, o primeiro contato quando a gente sai do campo para a companhia é um
caminho cercado por árvores. Do alto daquelas árvores, os policiais antigos
começavam a disparar tiros de festim e soltar bombas. O camarada que deveria
ser treinado desde o início pra policiar, já começa a ser apresentado a uma
guerra. Dentro do CFAP, a cultura dos instrutores não é formar policiais. É
formar combatentes. E aí é que tá o problema: você formar um combatente para
trabalhar numa coisa tão complexa quanto o aspecto social que ele vai ser
inserido. Um dia o policial tá trabalhando com um mendigo, no outro com um
juiz, no outro com um assassino, no outro com um estuprador. Para você preparar
um combatente para trabalhar nesse contexto, é muito delicado. Demora muito. Se
isso não for muito bem feito você acaba criando monstros.
As instruções, as aulas que são ministradas no CFAP desde o início elas
começam a mudar o viés do camarada. A minha turma não teve nem aula de direito
penal, não teve aula de direito constitucional, não teve aula de filosofia, de
sociologia. A gente chegava na sala de aula, sentava, o instrutor falava meia
dúzia de anedotas da história da polícia militar e o resto é contando caso
(matou fulano, prendeu ciclano). Dentro do próprio ambiente ali, os outros
oficiais que coordenavam o curso só tinham um objetivo: deixar o cara
aguerrido, endurecido, fazer esse recrudescimento da moral do indivíduo para
ele não demonstrar piedade, covardia. Eles acreditam que se o camarada
endurecer bastante ele pode preservar a própria vida com isso. Mas isso é ruim:
você cria um cachorrinho bitolado que não consegue enxergar as coisas ao redor
como elas são.
Depois de alguns meses no CFAP, o recruta vai estagiar e trabalhar com
os antigos na rua. Como na época era verão, existiam as chamadas Operações
Verão. Eles colocam o policial antigo armado e dois ou três “bolas-de-ferro”,
como eles chamam os recrutas, justamente por dificultar a movimentação do
antigo. Geralmente, os batalhões que recebem esse efetivo do CFAP são os
litorâneos. Aí a gente foi pro 31º, no Recreio, 23º, que é o Leblon, 19º,
Botafogo, 2º, Copacabana… Eu ficava um pouquinho em cada um.
No período de praia, por exemplo, a gente chegava e o antigo ficava
angustiado com a nossa presença porque queria pegar o dinheiro do flanelinha,
do cara que vende mate, da padaria. Outro exemplo: uma das instruções que os
oficiais davam antes do efetivo sair pro policiamento era: “olha, vocês podem
fazer o que quiserem, pega o pivete, bate, quebra o cassetete, dá porrada no
flanelinha. Só não deixa ninguém filmar e nem tirar foto. O resto é com a
gente. Cuidado em quem vocês vão bater, com o que vocês vão fazer e tchau e
benção”. A minha turma partiu pro estágio com dois meses de CFAP, dois meses
tendo meio expediente e depois rua. E aí, meu camarada, a barbárie imperava:
pivete roubando, maconheiro… Quando caía na mão era só porrada e muito gás de
pimenta. Foi ali que eu tive contato com as técnicas de tortura que a Polícia
Militar procede aí em várias ocasiões.Você vê agora o caso do Amarildo. O modus operandi vai se repetindo, evoluindo, até que toma uma
proporção mundial. Eu conheci aqueles recrutas que participaram do caso
Amarildo lá no presídio da Polícia Militar e eles foram formados depois do meu
livro. O último parágrafo do meu livro diz que os portões do presídio da
polícia militar estarão sempre abertos para receber cada novo monstro nascente.
E que venha o próximo. E continuam nascendo os monstros, um atrás do outro.
Aqueles policiais que participaram do caso Amarildo, pelo menos de acordo com o
que o inquérito está investigando eles estão fazendo as mesmas práticas que eu
já fazia, que o meu recrutamento já fazia, que outros fizeram bem antes de mim
e que já vem de muitos anos. Vem de uma cultura.
Como um policial aprende a torturar?
É no dia a dia mesmo. O nosso direito dificulta o trabalho do policial
em certos aspectos. Por exemplo, um pivete roubou uma coisa de um turista e
correu. O policial corre atrás do pivete e pega o pivete. Quando ele consegue
chegar no pivete, ele já jogou o que ele roubou fora e ele é menor de idade,
não pode ser encaminhado para a delegacia. Porra, mas o policial sabe que ele
roubou. E aí entra o revanchismo, a hora da vingança. Primeiro lugarzinho
separado que tiver (cabine, atrás de um prédio, dentro dos postos do
guarda-vidas) é a hora da válvula de escape. E eu posso assegurar para você: da
minha turma do CFAP, de dez que se formaram comigo, nove jamais pensaram que
passariam por um processo de desumanização tão grande. O camarada começa a ver
um pivete levando choque, spray de pimenta no ânus, no escroto, dentro da boca
e não sente pena nenhuma. Pelo contrário, ele ri, acha engraçado.
E tem um motivo: se nesse momento que o mais antigo pegou o pivete e
começa a fazer isso, se você ficar sentido, comovido por aquela prática, pode
ter certeza que vai virar comédia no batalhão, vai ser tido como fraco. Vai ser
tido como inapto para o serviço policial. E aí você vai começar a ser
destacado, a ser visto como um elemento discordante desse ideal que a tropa
criou. Se eu tô com você, mas você não tem disposição pra bancar o que eu tô
fazendo com um vagabundo, na hora que der merda é você que vai roer a corda. Na
hora que o vagabundo me der tiro, você não vai ter peito pra meter tiro nele.
No fim, você vai ser afastado: vai ficar no rancho, na faxina ou em algum
baseamento a noite toda.
Você vai formando e selecionando por esse critério. Se você é duro, você
vai trabalhar na patrulha, no GAT (Grupamento de Ações Táticas), na Patamo
(Patrulhamento Tático Móvel)… Agora você que é mais sensato, que não vai se
permitir determinadas coisas, não tem condições de você trabalhar nos serviços
mais importantes. Não tem como o camarada sentar no GAT se não estiver disposto
a matar ninguém. Não tem como. E não é matar só o cara que tá com a arma na mão
ali, é matar porque a guarnição chega a essa conclusão: “Não, aquele cara ali a
gente tem que matar.” Aí é cerol mesmo. Se você não estiver disposto a
participar disso aí, tu não vai sentar no GAT, não vai sentar numa patrulha
nunca.
No livro, você descreve o constante clima de guerra e revanchismo entre
policiais e traficantes e conta a história do recruta Sampaio…
É uma das partes verídicas do meu livro, fiz questão de chamar a atenção
pra esse caso do Sampaio. Quem sabe para a família também ler e sentir que
alguém lembrou dele. Esse caso foi muito sério… Foi pesado pra caraca… [Rodrigo
chora]. No livro eu coloco que o protagonista conhecia, mas não tinha muita
intimidade com o Sampaio. Eu particularmente conhecia bem o Sampaio. Um dia eu
cheguei para trabalhar no CFAP, tava de serviço na guarda. Era sexta-feira de
carnaval. Quando eu cheguei, já ouvi a notícia que o Sampaio tinha sido
assassinado com 19 tiros, lá em Caxias [Duque de Caxias, município da região
metropolitana do Rio]. O Sampaio era filho caçula de uma família relativamente
grande, tinha vários irmãos, a mãe dele era uma senhora bem velhinha. Era pra
ele estar de serviço comigo naquele dia. Ele ia todo dia pro CFAP de ônibus.
Naquele dia, ele ia de carona com um outro companheiro lá do CFAP. Ele tava ali
parado no ponto de ônibus, esperando o cara passar de carro e passaram alguns
bondes de vagabundos voltando do baile. Ele morava numa área onde tinha
traficantes, mas, como ele era recruta e cria da área, ele achou que teria uma
tolerância com a presença dele pelo menos até ele se formar e conseguir sair.
Ele tava no ponto às cinco da manhã, os vagabundos voltavam do baile e alguém o
reconheceu. Eles fizeram a volta e começaram a atirar nele ali. Ele correu,
correu muito, quase 800 metros. E foi cair lá perto de uma ruazinha de barro
com 19 tiros de calibre .380. Todos eles nas costas. Todos.
A gente já chegou no CFAP com essa notícia próximo a nossa formatura. Aí
pediram voluntários para a guarda fúnebre e eu fui pro enterro dele. Foi uma
representação da polícia lá. E pô, bicho, ali eu vi como… [Rodrigo chora
novamente]. Se eu tava rachado, ali foi o ponto de quebra. Pô cara, ele tinha
19 anos. 19 anos…
Como o clima de guerra entre criminosos e policiais influencia na
formação do policial no dia a dia?
Depois que eu vi o Sampaio no caixão lá com flores até o pescoço, só a
cara pra fora, a família dele chorando… O comandante do CFAP nem quis ir ao
enterro, nenhum oficial foi. A kombi que a gente usou pra levar o corpo até o
enterro, a gente teve que empurrar porque não funcionava. Depois que eu vi esse
descaso todo, eu pensava: “porra, o Sampaio morreu. Tomou 19 tiros. Não é
possível que vai ficar por isso mesmo”. Não teve uma palestra de alguém pra
conversar com a gente, não teve um inquérito, não teve nada. Ninguém sabe até
hoje quem deu 19 tiros num recruta que estava desarmado. Ninguém sabe. Ali eu
pensei: “se eu der mole, vai ser um contra um e de caixão livre. Alguém vai ter
que pagar, isso aqui não vai ficar de graça não. Vou ter que escolher de que lado
que eu tô.” E nós nos formamos, e eu fui começar a trabalhar na rua.
Quando eu cheguei no batalhão, eu não poderia trabalhar numa coisa que
fosse muito perigosa. Eles colocaram a gente num serviço de P.O, que é o
Policiamento Ostensivo a pé. Eu trabalhei muito na área da Tijuca. Naquela
época não tinha UPP ainda, não existia. Então a Tijuca, agora é menos, mas era
uma região muito complicada de se trabalhar pela quantidade de morros ao redor.
Eu trabalhava na rua 28 de setembro e no fim dessa rua era o Morro dos Macacos,
que era o único morro da facção criminosa ADA (Amigos dos Amigos) em uma área
cercada pelo Comando Vermelho. Era um morro muito forte, os bandidos eram muito
aguerridos no combate. Não tinham medo de matar polícia, de dar tiro em polícia.
É uma área onde passa muito ladrão, principalmente do Jacarezinho. Eles vinham
de lá, atravessavam o túnel Noel Rosa, roubavam na 28 de setembro e voltavam
pro Jacarezinho, mudavam de área de batalhão e era difícil de pegar. Ali,
bicho, meio dia eu já dei tiro nos outros ali em saidinha de banco. A primeira
vez que eu disparei a minha arma de fogo foi assim, meio dia e pouco, no Itaú
da 28 de setembro. Tinha acabado de assumir o serviço. A gente vinha de ônibus
até a 28 de setembro, eu pus os pés na rua e um camarada apontou: “Tão
roubando, tão roubando”. Aí eu vi um cara saindo do banco e sentando na moto.
Já puxei a arma, falei pra ele parar, e o garupa se encolheu. Aí o motorista
acelerou e eu atirei. Só que eu errei e o cara escapou. Ali eu vi que o troço é
de verdade, que se der mole, fechar o olho, vai ser baleado. Aconteceu também
quando o Borrachinha foi baleado [episódio descrito no livro]. O Borrachinha
tomou um tiro de .380 no meio do olho, foi pro hospital. E não passava uma
semana sem que alguém próximo a mim tivesse levado um tiro. Policial que era
baleado quando tentavam assaltar…. Quando eu tava na patrulha todo dia tinha.
Todo dia, quando eu tava trabalhando na DPO, e com o rádio e eu escutava:
“Prioridade, prioridade. Assalto em tal rua” é porque algum vagabundo tinha
dado tiro em patrulha e tava correndo. O GAT quando entrava no Morro dos
Macacos, eu tava patrulhando em volta e só ficava escutando o pau roncando lá.
E eu só ficava pensando: “pô cara, eu tenho que ir pra lá, quero ir pra lá,
quero dar tiro”. E agora que eu tive tempo pra parar e pensar eu fico
vendo como isso é absurdo. É absurdo.
Eu via essas coisas acontecerem. Rajada de fuzil uma da tarde nos
Macacos, seis horas da tarde o cara descarregando uma nove milímetros em cima da
patrulha pra poder fugir. Eu via isso acontecendo. Agora eu penso como isso é
surreal, é uma guerra. Essa banalização do confronto entre polícia e bandido é
singular no Rio de Janeiro.
O criminoso aqui no Rio de Janeiro não tem receio de dar tiro no policial,
nenhum receio. Não tem receio de jogar uma granada em cima do policial que
entra numa favela. Tem noção do que é isso? Escutar uma granada explodindo e
você saber que é pra você? Bicho, isso deixa qualquer um pirado. Você tá
passando com a sua patrulha e de repente você escuta os tiros atrás. O cara
fica louco. Bicho, você dentro de um blindado, parece que você tá no Iraque ou
na Síria cara. Quando você embica de blindado dentro de um acesso à favela, é
tiro batendo no vidro, na lataria. Granada explodindo. Não tem como o cara não
ficar louco. Isso cria um stress no policial que tá ali direto, que fica
difícil do policial equacionar isso na cabeça dele. Você imagina uma escala de
24 horas por 72 de descanso. Então o cara chega na segunda-feira, vai trabalhar.
Entra no blindado, bota colete, fuzil, carregador e vai pra favela. Troca tiro,
leva tiro, mata um, dois, vai pra delegacia levar a ocorrência. Vão pro
batalhão. Passa terça, quarta, quinta. Sexta-feira ele entra, vai pra favela de
novo, troca tiro de novo, mata mais um. Não tem como se conservar são.
O monstro é uma metáfora desse processo de desumanização pelo qual o
camarada passa na lida diária do trabalho. Por mais que o cara ele tenha
tendências homicidas, seja violento, tenha caráter duvidoso antes de entrar na
Polícia Militar, quando ele entra isso tudo é potencializado. É a hora disso
extravasar. Essa lida contínua com situações de confronto, morte e violência
tem que ser encarada de maneira séria pelos gestores da Polícia Militar. A gente
tem que parar e pensar: a quem interessa deixar que esse bando de alienados
fique na rua matando e levando tiros. A quem interessa isso?
No livro você também comenta sobre a participação dos oficiais nesse
ciclo de violência e corrupção e chega até mesmo a chamá-los de “chefes de
quadrilha”. Você diz que eles estão no comando disso tudo. Como isso acontece?
É o coronelismo moderno. No militarismo, não tem como uma coisa seja ela
boa ou errada continuar sem a anuência de quem tá no comando. Se eu e você estamos
na patrulha e a gente começa a agir de uma maneira que está desagrando o
comando, ele vai tirar a gente da patrulha. Se eu e você estamos na patrulha,
trocando tiros, matando gente e a gente continua na patrulha, é porque o
comando quer que a gente continue. Dentro da estrutura da Polícia Militar, o
coronel, o comandante do batalhão é que coordena todo esse esquema que mantém a
área do batalhão em funcionamento. Toda área de batalhão no Rio de Janeiro tem
ponto de táxi, tem clínica de aborto, tem tráfico de drogas, tem oficina de
desmanche, tem jogo do bicho. Essas atividades só podem ocorrer enquanto o
policial não vai lá e manda parar. Por que o policial não vai lá pra impedir?
Porque ele tem determinação pra não ir. Posso garantir pra você que qualquer
policial do Rio de Janeiro que fechar uma banca de bicho na área do batalhão
dele, no outro dia ele tá em outro batalhão. Isso se não estiver em outra
cidade. E ainda pega fama de “rebelde”, de “problemático”.
Há algum tempo teve uma comoção muito grande por conta de uma menina que foi fazer um
aborto e faleceu, a Jandira. Todo mundo sabia onde era aquela
clínica de aborto. Por que aquela clínica não foi fechada? Se a patrulha for lá
e fechar a clínica de aborto, o coronel vai querer saber porque fechou a
clínica. “Ah, teve reclamação”. Ok, mas a clínica manda dinheiro pro batalhão
pra continuar funcionando. Se o policial se meter nesse esquema, ele vai sofrer
algum tipo de consequência. Não é consequência de morte, violência, não. É
consequência administrativa. Vai ser encostado de alguma forma e daqui uma
semana a clínica vai estar funcionando de novo, pode ter certeza.
No batalhão, você tem a administração da lavradura militar e tem as
companhias. O comandante da companhia é quem vai definir que tipo de serviço
existe dentro das companhias (se o cara vai trabalhar na patrulha, na Patamo,
nas cabines…) A patrulha é considerada um serviço bom. Te deixa móvel, você
consegue se movimentar bastante dentro da área do batalhão e tem possibilidade
de ganhos. Você pode extorquir o usuário de drogas, você pode pegar um ladrão,
tomar a arma dele e ficar com o dinheiro dele e vender a arma. É diferente do
serviço baseado, que você tem que ficar parado no mesmo lugar o dia todo. Pra
você trabalhar nessa patrulha, você tem que ser indicado pelo comandante de
companhia, pois é ele quem determina onde cada um vai ficar. Você foi indicado,
beleza, vai trabalhar na patrulha. Pra você se manter na patrulha, você vai ter
que dar alguma coisa pro comandante de companhia. Porque tem alguém atrás de
você que tá querendo ir pra patrulha também. Na minha época, todo mundo que
trabalhava na patrulha pagava cem reais por mês pra continuar na patrulha. Cem
meu e cem do comandante da patrulha. Toda sexta-feira à noite, o comandante da
companhia pegava duzentos reais de cada patrulha, de quem tava de serviço à
noite. Isso da patrulha. Mas ele também pega de quem tá trabalhando num
subsetor, também pega 200 reais do cara que tava na cabine, mais um dinheiro do
camarada que trabalha no trânsito. Quando você vai ver no final do mês, esse
pedagiozinho dá uma soma boa pro comandante de companhia.
Se o cara que tá no serviço, por exemplo, a patrulha, não quiser pagar,
OK. Ele só não vai ficar na patrulha, vai ser deslocado pra outro serviço. Esse
pedágio é uma forma do comandante receber um dinheiro e se blindar. Ele não
precisa disputar na rua o dinheiro que ele vai receber, ele recebe dentro do
batalhão. É um tipo de achaque e corrupção muito difícil de ser descoberto
porque um policial dificilmente vai dizer que o comandante tá extorquindo ele.
Dificilmente vai dizer, dificilmente vai conseguir provar e vai sobrar pra ele.
Por que dificilmente ele vai dizer?
Porque se ele falar pro comandante do batalhão que o comandante da
companhia tá pedindo cem reais pra ele continuar na patrulha, a primeira coisa
que o comandante do batalhão vai dizer é: “você não tá mais na patrulha”. Ele
pode tentar produzir provas, colocar uma câmera escondida, tentar ir mais a
fundo. Mas aí, meu camarada, ele tá assinando a própria sentença de morte. Aí
você tá querendo prejudicar o comandante da companhia, tá querendo prender o
cara. Entre a própria tropa é visto como ofensivo, como uma coisa péssima. Isso
não vai acontecer nunca.
Esse é só mais um exemplo. Quer outro? Pra você tirar férias, você tem
que pagar o sargenteante. Olha que absurdo. Esse dinheiro é dividido entre o
sargenteante, que é um sargento, e o capitão que é comandante de companhia.
Isso tá no filme lá, no Tropa de Elite, não é mais novidade pra ninguém. Mas
não para por aí não. Se você não quer mais trabalhar, você pode chegar no
oficial e falar que não quer mais trabalhar. Ele vai falar: “Ok, todo mês o seu
salário fica pra mim”. Aí o sargenteante te coloca numa escala fantasma. Ou
seja, você não existe mais no batalhão. Você não precisa mais colocar os pés no
batalhão. Isso é bom pro cara que trabalha na milícia, no jogo do bicho. O
camarada que, por exemplo, tá trabalhando na banca do jogo do bicho. Recebe lá
cinco mil por semana pra trabalhar no jogo do bicho. Ir pro batalhão pra ele é
ruim porque ele perde o dia de trabalho dele no bicho. Então ele pega o salário
dele de dois mil reais, deposita na conta do comandante de companhia e não
aparece mais no batalhão. Fica só trabalhando no jogo do bicho. Pra ele é mais
jogo, porque ele não precisa mais se expor, não precisa botar farda, ter
horário, fazer a barba. O interessante pra ele é a carteira de policial e o
porte da arma. Isso é muito comum, é fácil de se constatar. Qualquer promotor
de justiça que chegar no batalhão de surpresa e disser: “bom dia, eu quero o
efetivo do batalhão e a escala de serviço”. Ele vai encontrar, no mínimo,
cinco, seis fantasmas. Em qualquer batalhão do Rio de Janeiro. Isso é batata.
Esses esquemas todos nos batalhões da Polícia Militar são muito antigos.
Eles fazem parte de uma cultura da polícia. Acabar com esses esquemas todos vai
demandar uma coisa muito complicada, que seria tirar o poder das mãos dos
coronéis.
Por isso você defende a desmilitarização?
É um primeiro passo. Quando você vê um soldado policiando, alguma coisa
já tá errada. Ou o camarada é soldado, ou é policial. Ele pode até ser um
soldado policial dentro do quartel, mas não na rua. O soldado tem uma premissa
que é o quê? Matar o inimigo. O soldado é formado para eliminar o inimigo e o
policial não, pelo menos não deveria. O policial, ao contrário do que se
acredita em boa parte da sociedade carioca, ele não foi feito pra matar
ninguém. O policial não tem inimigo. O camarada que hoje tá dando tiro no
policial, ontem pode ter estudado com ele, pode ter frequentado os mesmos
lugares que ele. O criminoso é resultado da nossa sociedade, do nosso contexto.
O crime é um fato social e o policial não pode enxergar o criminoso como um
inimigo. Não é pra matá-lo. Prendeu, leva pra lei tomar as providências dela.
Mas o que se convencionou acreditar é justamente o oposto.
O coronel, os oficiais, acumulam muito poder em uma figura só. O coronel
tem uma área de influência enorme dentro do batalhão dele, ele determina muitas
coisas. E o soldado não pode questionar o coronel. O soldado não pode entrar na
sala do coronel e falar assim: “Coronel, por que eu não posso abordar aquela
van pirata que tá passando ali?” Porque isso já constitui uma transgressão
disciplinar. Desde o legalismo do militarismo, até as regras subjetivas que
regem a relação entre subordinados e superiores hierárquicos, tudo serve para
impedir o camarada de pensar. Ele não pode virar pro comandante e falar:
“capitão, não vou pra rua porque o colete tá vencido”. Não pode. Ele pode
reclamar do colete, mas não pode reclamar para o capitão que é quem resolveria.
Quando você tira o militarismo e coloca os profissionais de segurança em nível
equivalente, se o profissional de segurança questionar o coronel por que ele
teve que voltar das férias pra trabalhar, o coronel não vai poder responder:
“você tá indo porque eu quero. Porque eu tô determinando que você vá. E se você
não for, vai ficar preso à disposição”.
Você vê que essa confusão de atribuições entre soldado e policial, elas
não se resolvem de maneira fácil. As coisas continuam acontecendo aos olhos
de todo mundo e ninguém faz nada. Por exemplo, aquele pessoal que
tava voltando de uma festa dentro do HB20 branco e quefoi perseguido por uma patrulha. Não teve um estalinho, uma bombinha, nada que viesse do HB20 pra
patrulha e o cara deu 15 tiros de fuzil no carro, num carro em fuga. Só poderia
acontecer na cabeça de um soldado, na cabeça de um policial não aconteceria
nunca. Um policial iria correr atrás, cercar. Mas ele não ia dar tiro em quem
não tá dando tiro nele. Só na cabeça do soldado, que acha que tá na guerra e
acha que se não atirar primeiro vai levar tiro. O cara foi lá, deu a sirene e o
carro acelerou pra fugir da polícia. “Ah, é bandido, vou dar tiro”. Podia ser
alguém bêbado, podia estar todo mundo fazendo uma suruba dentro do carro, podia
ter uma cachaça no carro e o cara estar com medo de ser pego, o cara podia não
ter habilitação, o cara podia ser surdo… São milhões de coisas, mas o cara não
para pra analisar essas coisas porque ele não foi condicionado pra pensar, a
contextualizar o tipo de serviço que ele tá fazendo. Ele foi treinado pra quê?
Acelerou, correu, bala!
Aquelas crianças que tavam brincando na rua, filmando, um correu atrás
do outro. Daqui a pouco é tiro pra todo lado e o garoto caiu agonizando. Sabe por que? Preto e pobre correndo na favela é bala. Depois a
gente vê o que é. Foi o soldado sobrepujando o policial de novo. Ele tava
entrando num território conflagrado. Ele entrou lá pra prender ou pra matar?
Pra matar, pô. Se ele tivesse entrado pra prender, a primeira coisa que ele ia
fazer quando viu o menino correndo era gritar pra ele parar.
A nossa sociedade carioca, principalmente da região metropolitana,
criou, até por sofrer muito com os assaltos e tudo mais, um pensamento torto.
Quando um policial vai lá e mata um bandido, a sociedade faz o quê? Aplaude.
Toda vez que o policial entra em confronto, mata um cara que tava fazendo o
arrastão a sociedade aplaude e estimula. Só que o policial militar tem que
entender que quando ele errar a sociedade não vai aplaudir não. A sociedade vai
sentar pra formar o tribunal do júri e vai condená-lo sem a menor vergonha. Mas
ao mesmo tempo, criou-se essa cultura de que o policial tem que matar.
Tem uma frase sua no livro que até vai nesse sentido, quando você
escreve: “O PM só vale o mal que ele pode causar”. Como é que o PM enxerga essa
hipocrisia da sociedade que às vezes exige o policial e às vezes o monstro?
Se o PM andar com uma roupa humilde, pegar ônibus pra trabalhar,
se ele não andar demonstrando que tá armado, ele vai ser encarado por
aquelas pessoas que o conhecem como um policial bobão que não faz mal pra
ninguém. Agora, se ele tá dentro de um Fusion, com uma pistola enorme na
cintura, com roupa de marca, cordão de ouro no pescoço e mete a porrada em quem
tá fazendo merda perto da casa dele. Se ele se torna algo que realmente traz
risco, ele se torna valorizado. “Ih, pô, não mexe com o fulano não. Ele é
polícia”. Há uma glamourização desse
estado desumanizado. A sociedade valoriza mais o monstro do que o policial e é
por isso que ele tá nascendo o tempo todo.
As nossas próprias autoridades políticas valorizam a criação dos monstros,
mas tem que ter alguém pra eu apontar o dedo na hora que tiver dando merda. As
autoridades querem que existam monstros e tem vários exemplos disso.Você lembra do caso do
Matemático, que foi perseguido pelo helicóptero? O camarada de helicóptero com uma M60, atirando em um carro em
fuga que não deu um tiro nele. Enquanto isso, a esteira de tiros batendo nos
muros das casas, nos carros estacionados, em tudo que é lugar. Aquilo ali é o
exemplo da hipocrisia e de como as nossas autoridades são parciais. Se fosse
uma Patamo fazendo isso, os policiais iriam todos presos. Mas como foi o
helicóptero, tá tudo tranquilo. Agora, me diz a diferença entre o cara do
helicóptero e os caras do HB20? Não tem diferença nenhuma. Mas o tratamento foi
bem diferente. “Ah, aquele PM ali que atirou no carro em fuga, errou. Mas o
cara do helicóptero, não, vamos proteger ele porque alguém tem que fazer esse
tipo de merda.”
O Estado quer que alguns profissionais façam sim esse tipo de serviço
sujo. Como fizeram com o Matemático, como fizeram com o Bem-te-vi na Rocinha, mas sempre que a coisa começa a chamar muita atenção, eles entregam
alguns pra serem açoitados. E com isso a gente vai empurrando. E não
enfrentamos nenhum problema.
O seu livro chegou a ser proibido no BEP (Batalhão Especial Prisional,
prisão para policiais militares).
A Polícia Militar não gostou do livro, tanto que ele foi censurado. Eu
me ressinto um pouco de não ter previsto isso. Eu até imaginava que teria algum
tipo de represália. Depois de escrever o livro, eu pensei em segurar ele e
lançar quando eu saísse da prisão. Mas as coisas não se resolveram, eu já tava
com o livro pronto, a editora tinha gostado e tava querendo publicar. Aí eu
lancei o livro enquanto ainda tava no presídio da Polícia Militar. Foi a pior
coisa que eu fiz. Escrever um livro falando mal da Polícia Militar dentro do
presídio da Polícia Militar, que que tu imagina que pode ter acontecido?
Cara, quando o livro foi lançado, minha esposa levou 30 exemplares pra
distribuir lá no BEP, pra alguns amigos. Eu ia dar pra rapaziada que sabia que
eu tinha escrito o livro e queria ler. Quando ela chegou, não deixaram ela
entrar com o livro. “Ah, mas por que não pode entrar com o livro?” “Ordem do
comando, não pode entrar com esse livro no presídio.” Minha esposa ficou
nervosa e foi lá no plantão do Ministério Público no centro do Rio pra contar o
que aconteceu, que o livro foi censurado. Ela contou que o Elite da
Tropa, por exemplo, pode entrar, o livro que o capitão escreveu. Mas o livro
que o ex-soldado escreveu não pode. Aí ela foi e relatou isso lá pro Ministério
Público e depois de alguns dias o MP oficiou o comando da Polícia Militar
solicitando informações sobre o porque da censura prévia. O comando deu lá as
explicações dele.
Dois dias depois, de madrugada, aconteceu. Entraram quatro policiais,
pelo que eu pude perceber, na minha cela, todo mundo com roupa do BOPE, touca
ninja, sem identificação. Entraram na minha cela, me acordaram e eu fui pro
saco, tomei choque. Saco e choque pra caramba. E eles falaram: “Manda lá a tua
esposa retirar a denúncia do Ministério Público, se não tu vai amanhecer
suicidado aqui dentro. Na próxima vez que a gente voltar, vai ser pra você se
suicidar, entendeu bem?”. Como não entender um recado desse? A minha esposa não
foi mais lá, retirou a denúncia e o assunto morreu, ficou por isso mesmo. Eu
falei com a minha advogada e ela foi, procurou gente pra denunciar, mas ninguém
quis ouvir.
O Comando da Polícia Militar se doeu mesmo comigo, tomou como uma coisa
pessoal que poderia trazer algum tipo de incômodo pra eles lá em cima. É
impressionante como ainda hoje você incomoda se você falar o que você pensa, se
você falar a verdade.
Teve uma livraria, uma rede de varejo que, por conta do lançamento do
livro, queria fazer uma noite de lançamento. Eles queriam fazer o lançamento do
livro, falaram com a minha editora e tudo mais. A Justiça autorizou a minha ida
até a livraria pra poder fazer a noite de lançamento. Só que, no despacho, o
juiz determinou que ficava a critério da Polícia Militar providenciar a escolta
pra que eu fosse até o local de lançamento no dia tal, hora tal, pra fazer o
lançamento do livro. Só que no dia, a escolta não pode me levar porque ficou
empenhada em outra atividade. Ou seja, o comandante providenciou a escolta, mas
no dia disse que não tinha escolta pra me levar. A tentativa era essa, de
calar, de evitar que eu falasse.
Em que ponto se perde o policial e se ganha o monstro?
São vários pontos de quebra. Pra mim foi a morte do Sampaio. Quando eu
vi o Sampaio morto, um recruta de 19 anos morto com 19 tiros pelas costas. Ali
eu falei: “É guerra e se alguém atentar contra minha vida, eu vou tacar bala
também”. Ali foi que eu percebi a crueza da morte. Essa lida diária com a
violência constante é que causa a desumanização. Com a corrupção também, mas
ela se torna parte do processo da violência. Porque pra você conseguir pegar o
arrego do traficante, você tem que subir o morro e dar tiro nele. Se não o
traficante não vai te pagar nada. Traficante não paga pra quem tá baseado na
entrada do morro, porque quem tá baseado na entrada do morro não atrapalha o
movimento da boca. Essa desumanização vem primeiro com a violência, depois vem
com os benefícios pecuniários que você pode ter quando os outros querem evitar
a violência. Primeiro eu vou lá, entro no morro, entupo o traficante de bala.
Vai descer um, dois, três mortos. Na semana que vem o traficante vai pagar pra
não descer mais três mortos. A corrupção é consequência desse estado de
violência que o policial tá sujeito o tempo todo. O policial militar tá o tempo
todo oprimido: na folga dele ele tá oprimido, tem receio de ser reconhecido,
assassinado. Pra mim esse ponto de quebra foi perceber que eu estava no meio de
uma guerra de verdade. E como o Sampaio, depois vi muitos outros amigos
morrendo, fui a muitos enterros, funerais. Mas aí eu já estava mais
recrudescido. Tem outro caso que eu conto é o de dois policiais assassinados
numa cabine, no Andaraí, o sargento Marco Aurélio e o cabo Peterson. Eles
chegaram pra trabalhar, de manhã cedo, e lá na cabine Caçapava o vagabundo
matou os dois de .45. O cara fugiu sem levar nada. Cheguei lá pra ver e tava o
sargento Marco Aurélio sem a parte de cima da cabeça e o Peterson tava todo
cheio de tiros no tórax.
Muita gente da minha turma morreu, tá presa, foi excluída. E a fábrica
de monstros tá aberta, continua lá. Eles vão preenchendo. Sempre tem gente
querendo entrar por causa dessa glamourização do monstro. Todo concurso da PM é
100 mil inscritos, 80 mil inscritos. É muita gente, pô. A relação
candidato/vaga é paralela a vários cursos aí da UERJ. A fábrica tá aberta e
muita gente quer entrar nela, mas a gente vê que tá tudo errado.
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