A calamitosa situação das cadeias femininas é retratada no livro "Presos que Menstruam", que chegou às livrarias em julho
Por Nana Queiroz*
(FOTO: ALEX SILVA)
Maria
Aparecida lembrava uma avó. Uma dessas avós imaginárias que cresceram com
histórias de Dona Benta. Cabelos grisalhos, ombros curvados, pele caída de um
jeito simpático ao redor dos olhos, expressão bondosa. Ela estava sentada,
quieta e isolada, no fundo de um auditório improvisado na Penitenciária
Feminina de Santana, em São Paulo, quando desatou a contar histórias da vida.
Revelou que foi presa ao ajudar o genro a se livrar de um corpo. A certa altura
contou que tinha apenas 57 anos. A cadeia havia surrado sua aparência, ela
envelhecera demais. Tinha criado 20 filhos, mas há quase três anos não recebia
nenhuma visita ou ajuda, um Sedex sequer, e tinha que se virar com a bondade do
Estado. E a bondade do Estado com as presas sempre esteve em extinção no
Brasil. “Sabe, tem dia que fico caçando jornal velho do chão para limpar a
bunda”, contou, sem rodeios.
Conversando com detentas como Maria para meu
livro Presos
que menstruam, lançado este mês pela Editora
Record, percebi que o
sistema carcerário brasileiro trata as mulheres exatamente como trata os
homens. Isso significa que não lembra que elas precisam de papel higiênico para
duas idas ao banheiro em vez de uma, de papanicolau, de exames pré-natais e de
absorventes internos. “Muitas vezes elas improvisam com
miolo de pão”, diz Heidi Cerneka, ativista de longa data da Pastoral
Carcerária.
A luta diária dessas mulheres é por higiene e dignidade. Piper Chapman, protagonista da série Orange is the New Black, cuja terceira temporada acabou de estrear no
Netflix, provavelmente não sobreviveria numa prisão brasileira. Se a loira
ficou abalada ao encarar as prisões limpinhas dos Estados Unidos, como reagiria
às masmorras medievais malcheirosas e emboloradas brasileiras, nas quais bebês nascem em banheiros e a comida
vem com cabelo e fezes de rato?
As prisões femininas do Brasil são escuras, encardidas, superlotadas. Camas
estendidas em fileiras, como as de Chapman, são um sonho. Em muitas delas, as
mulheres dormem no chão, revezando-se para poder esticar as pernas. Os vasos
sanitários, além de não terem portas, têm descargas falhas e canos estourados
que deixam vazar os cheiros da digestão humana. Itens como xampu,
condicionador, sabonete e papel são moeda de troca das mais valiosas e servem
de salário para as detentas mais pobres, que trabalham para outras presas como
faxineiras ou cabeleireiras.
Gardênia, uma traficante com a mente corroída pelas
drogas e a cadeia, é um exemplo vivo de como o Estado ignora gêneros nas
prisões do país. Quando foi presa pela última vez, Gardênia estava com uma
gravidez avançada. Ganhou no grito o direito de ir a um hospital — muitas mulheres não têm a mesma sorte
e precisam dar à luz na cadeia mesmo, com ajuda das outras presas. Gardênia ficou algemada à cama durante boa parte
do trabalho de parto e, quando sua filhinha Ketelyn nasceu, não pôde sequer
pegar o bebê no colo. “A vida da presa é assim: não pode nem olhar se nasceu
com todos os dedos das mãos e dos pés.” Quem sofre as consequências desse
parto-relâmpago até hoje é a menina, que, aos 17 anos, bate a cabeça na parede
toda noite até adormecer.
HIGIENE
NEGLIGENCIADA: MULHERES PRESAS RECEBEM O MESMO NÚMERO DE ITENS DE HIGIENE QUE
HOMENS, APESAR DE USAREM O DOBRO DO PAPEL HIGIÊNICO, POR EXEMPLO. A SOLUÇÃO:
USAR JORNAL VELHO (FOTO: ALEX SILVA)
CÓDIGO
DE CONDUTA
Nenhuma grávida ou mãe que amamenta tem regalias na
cadeia. Em geral, as camas são dadas às mais antigas. Se não contarem com a
caridade das demais, as mães têm de dormir no chão com seus bebês. Sim, bebês também vivem em presídios
brasileiros (confira os números abaixo). A
lei garante à criança o direito de ser amamentada pela mãe até, ao menos, os
seis meses de idade. Apesar de tecnologias como caneleiras eletrônicas já
permitirem que a amamentação seja feita em prisão domiciliar, isso raramente
acontece. “A violação de direitos humanos com relação às gestantes é
generalizada”, diz a ativista Heidi. Além disso, os relatos de tortura são
comuns mesmo entre grávidas. Um caso chocante é o de Aline, uma traficante que,
durante a detenção em Belém do Pará, tomou uma paulada na barriga e ouviu do
policial: “Não reclame, esse é mais um vagabundinho vindo para o mundo”.
Safira era uma moça bonita com cabelos de fogo e
olhos grandes. Casou-se muito cedo, teve dois filhos e saiu de casa por apanhar
do marido. Trabalhava num supermercado, embrulhando sucos orgânicos e bolachas
recheadas que nunca poderia comer. Um dia, chegou em casa e o filho chorava de
fome. O dinheiro havia acabado e o leite também. Chorou um pouco, bateu na casa
do vizinho, pediu uma arma emprestada e foi roubar. Na cadeia, Safira se
transformou de uma menina doce e ingênua numa mulher dura que obedece às normas
locais. “As guardas têm as regras delas, e nós, as nossas”, explica. “Tem um
monte de coisas que não podemos fazer, e chamamos isso de disciplina. E quem
sai dessa disciplina é cobrada. Por isso existem as facções. Elas sempre têm alguém que vai nos dizer o que
devemos fazer. E o crime mais grave de todos é matar criança. Quem faz isso tem
que ficar isolada ou vai sofrer.” Outro preceito importante é não mexer com as
convertidas: evangélicas são protegidas pelo temor geral a Deus.
Além da religião, outra maneira de garantir uma
vida melhor na cadeia é o amor. Enquanto as lealdades nas prisões masculinas
são determinadas pelas facções criminosas, nas femininas elas giram em torno
dos casamentos. Essa foi uma lição aprendida rápido por Marcela, uma mulher de
classe média presa por auxiliar dois amigos em um assassinato por vingança.
Alvo de inveja por sua boa condição financeira, Marcela mal podia fechar os
olhos para dormir. A segurança veio nos carinhos de Iara, uma detenta que a
cobriu de atenção, proteção e companheirismo. A identificação entre as duas
evoluiu para amizade, a amizade para afeto, o afeto ganhou pele, calor e
cabelos entrelaçados. E Marcela, que só havia se relacionado com homens,
apaixonou-se por Iara.
Um estudo de 1996 estimava que 50% das detentas, como Marcela, se envolviam com outras mulheres.
De lá para cá esse número só cresceu. Algumas dizem que não são, mas estão
lésbicas. “Tem aquelas que assumem, e aquelas que fazem escondidinho”, afirma
Vera, sequestradora e homossexual assumida desde antes do crime. “Mas as que
curtem mulher mesmo, como eu, são poucas. Tem as que optam por isso porque se
apaixonam, para tirar uma onda, por curiosidade. E umas que ficam porque se
sentem ameaçadas. Se você é bonita, você incomoda. Se é muito feia, incomoda
também. Rola muita inveja.” E nenhuma esposa de cadeia, ela complementa, deixa
sua mulher entrar em briga sozinha.
GAMBIARRAS: NA
PRISÃO, É PRECISO TER CRIATIVIDADE PARA NÃO PASSAR (MUITA) NECESSIDADE. MEIA
VELHA VIRA COADOR DE CAFÉ, PILHAS VIRAM FOGÃO, E FÓSFORO USADO VIRA SOMBRA
PRETA (FOTO: ALEX SILVA)
DUPLO
ABANDONO
Pega por permitir que o namorado usasse sua casa
como cativeiro, a estudante de direito Júlia orgulha-se de ser uma das poucas
que não se envolveram com mulheres durante a pena. E admite que seu fraco mesmo
são os homens criminosos. “Pode colocar dez trabalhadores e um preso numa sala,
vou me apaixonar pelo preso”, diz. Inteligente e crítica, a prisão foi difícil
para ela, que ganhou o apelido maldoso de Julia Roberts por causa dos cabelos
bem cuidados e tingidos de loiro. Para tolerar o desrespeito das demais,
recorreu a um
excesso de calmantes, receitados costumeiramente e sem
muito critério pelos psiquiatras das penitenciárias. O namorado que levou Júlia
ao crime, no entanto, nunca apareceu para defendê-la ou visitá-la. “A maioria
das mulheres aqui também foi presa por culpa de um homem”, diz. “E eles são os
primeiros a desaparecer.”
Para aliviar a solidão e o abandono, outra
preciosidade nas cadeias femininas é o celular — uma das poucas maneiras de
arrumar um namorado lá fora. Safira confessa já ter usado esse artifício mais
de uma vez. “Sempre alguém apresenta alguém. ‘Minha amiga, fulana de tal’,
‘Manda uma foto.’ E a gente acaba arrumando alguém que vai lá visitar a gente.
Pelo menos eu sempre arrumei, né?”, ela se vangloria, estufando o peito e dando
um sorriso maroto. Trocar favores com carcereiros é outra estratégia de
sobrevivência disponível. Não há estupros, já que o sexo é também uma moeda na
barganha. A ativista Heidi Cerneka se recorda de uma presa que, assim, havia
conquistado o direito de usar um computador, com internet e até jogos, na sala
da administração do presídio.
Ao contrário da série do Netflix, a vida nas
prisões femininas brasileiras não é uma comédia. Quem perde com isso é a
sociedade. Ao esquecer a humanidade de nossas infratoras — e de seus bebês —,
deixamos de lado nossa própria humanidade.
RAIO X DAS PRISÕES FEMININAS
Os
dados mais recentes do Ministério da Justiça, de 2013, mostram que:
36.135 mulheres estão presas no Brasil
22.666 é a capacidade do sistema
13.469 em superlotação
3.478 funcionários monitoram toda essa população
647 estão presas em locais inadequados, como delegacias e cadeias públicas
54% identificam-se como negras ou pardas
747 são estrangeiras
67% não completaram o ensino médio
60% não têm parceiro em relação estável
60% respondem por tráfico de drogas
6% respondem por crimes violentos contra pessoas
345 crianças vivem no sistema penitenciário brasileiro hoje
4 a 8 anos é a média das penas cumpridas
18 a 24 é a faixa etária mais comum
0 é o número de rebeliões em todas as 80 penitenciárias femininas em 2013
22.666 é a capacidade do sistema
13.469 em superlotação
3.478 funcionários monitoram toda essa população
647 estão presas em locais inadequados, como delegacias e cadeias públicas
54% identificam-se como negras ou pardas
747 são estrangeiras
67% não completaram o ensino médio
60% não têm parceiro em relação estável
60% respondem por tráfico de drogas
6% respondem por crimes violentos contra pessoas
345 crianças vivem no sistema penitenciário brasileiro hoje
4 a 8 anos é a média das penas cumpridas
18 a 24 é a faixa etária mais comum
0 é o número de rebeliões em todas as 80 penitenciárias femininas em 2013
*Nana Queiroz é
autora do livro Presos que menstruam (Editora Record, 294 páginas, R$ 40),
diretora executiva da Revista AzMina e criadora do protesto “Eu não mereço ser
estuprada”.
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