Para crescerem no Oriente Médio e ameaçarem capitais do Ocidente, jihadistas contaram com um apoio essencial: o dos Estados Unidos e seus aliados no mundo árabe
Por Talmiz Ahmad | Tradução: Inês Castilho
Dick Cheney, ex-vice-presidente dos EUA: sob sua influência, Washington propôs criação de um “principado salafista” no Oriente Médio. Foi o início do apoio da Arábia Saudita e de outras monarquias do Golfo aos jihadistas – que depois metamorfosearam-se em ISIS |
Na noite de sexta-feira, 13/11, três bandos, com oito pessoas no total,
atacaram sete alvos em Paris. Mataram cerca de 130 pessoas e feriram centenas
mais. A maioria dos mortos assistia a um concerto musical, uma noite de
convívio alegre interrompida por um fim abrupto e terrível. O Estado Islâmico
do Iraque e Grande Síria (ISIS) assumiu rapidamente a responsabilidade. O
presidente François Hollande descreveu o ataque como um “ato de guerra” e
declarou estado de emergência, pela primeira vez desde a Segunda Guerra
Mundial. A sombra do conflito fratricida que já dura cinco anos na Síria
atingiu agora o coração da cultura ocidental.
Desde que o ISIS atraiu a atenção mundial, após a dramática
tomada de Mosul em junho do ano passado, seguida pela ocupação de outros
territórios ao longo da fronteira entre Iraque e Síria e pela
declaração do “Califado” naquelas terras da histórica Mesopotâmia, os conflitos
na região tiveram desdobramentos novos, e cada vez mais brutais, praticamente
todos os dias. Centenas de soldados sírios, yazidi, curdos e outros civis
iraquianos – além de alguns reféns ocidentais – foram sumariamente
executados por decapitações, com frequência filmadas e divulgados amplamente nas mídias sociais em
todo o mundo.
Embora atacado pelas forças dos Estados Unidos e pelas monarquias do
Golfo Pérsico aliadas a Washingon, o ISIS não sofreu nenhum grande revés
militar. Ao contrário: consolidou-se gradualmente, a ponto de converter-se em
um proto-Estado, com muitos dos atributos da ordem estatal – exército
permanente, recursos financeiros substanciais, um conselho de ministros,
governadores provinciais, um sistema judicial em funcionamento, uma força de
segurança inflexível e prestação de serviços municipais e de bem-estar.
Aparentemente, não tem dificuldades para atrair recrutas que correm para se
juntar a suas fileiras e levar a cabo atentados e missões suicidas. O
respeitado especialista em assuntos árabes Abdel Bari Atwan estimou
recentemente que o ISIS tinha um quadro de cerca de 100 mil combatentes. Estão
principalmente do mundo árabe, mas também de outros países da Ásia e até mesmo
– alguns milhares – na Europa.
Nos últimos meses, o ISIS fez sentir sua presença fora da Mesopotâmia –
na Líbia, a oeste, e no Afeganistão, a leste. Também expandiu sua base de
apoio, com um número crescente de corpos jihadistas (ou seus grupos
dissidentes) que declaram filiação ao Califado, preferindo-o à Al Qaeda.
Nos últimos meses, à medida em que que o ISIS levava adiante suas ações
devastadoras, a guerra na Síria entrou num impasse. As forças salafistas
apoiadas pelas monarquias do Golfo são incapazes de derrotar as forças
nacionais ainda leais ao presidente Bashar al-Assad. A situação mudou
dramaticamente quando, a partir de 30 de setembro, a Rússia envolveu-se no
conflito, ao lado do governo Assad, instalando na Síria aviões, tanques e de
vigilância. Moscou realizou bombardeios letais contra todas as forças hostis a
Assad, não se importando em distinguir entre o ISIS e as outros grupos
terroristas, embora o primeiro tenha sofrido pelo menos um quinto dos ataques.
Em 10 de novembro, as forças sírias apoiadas pela Rússia tomaram do ISIS a
parte oriental da cidade de Aleppo e a base aérea de Kweiras, ameaçando as
conexões logísticas do grupo com Raqqa e seus territórios no Iraque. A
consolidação das forças curdas da Síria, junto à fronteira turca, já bloqueou o
fluxo de armas e recrutas que abasteciam o Califado Islâmico a partir da
Turquia.
O ISIS tem respondido a esses ataques com duras represálias a seus
inimigos. Em 10 de outubro, realizou um duplo atentado em Ankara, na Turquia,
no qual 128 pessoas, principalmente manifestantes pró-curdos, foram mortas. Em
31 de outubro, reivindicou responsabilidade pela queda do avião de passageiros
russo que voava de Sharm el Sheikh para São Petersburgo, no qual mais de 200
pessoas perderam a vida. Em 6 e 12 de novembro, realizou dois bombardeios no
Líbano matando mais de 40 pessoas e regozijando-se de ter atacado com sucesso
xiitas “apóstatas”. O comentarista libanês Khalil Harb pressagiou, já então:
“muito mais derramamento de sangue está a caminho.”
No dia em que ocorreram os ataques em Paris, os EUA anunciaram que seus
drones haviam matado Mohammed Emwazi, também conhecido com “John Jihadi”,
membro do ISIS nascido no Reino Unido que comandou vários assassinatos filmados
e assistidos no mundo todo. Comentando essas notícias, o primeiro ministro britânico
David Cameron disse que havia sido um ataque “ao coração da organização
terrorista”. Por sua parte, os norte-americanos também anunciaram que haviam
matado o líder do ISIS na Líbia, Abu Nabil, de nacionalidade iraquiana.
Os ataques a Paris são, portanto, parte dos ataques olho-por-olho que
vêm ocorrendo nos últimos meses e são diretamente ligados ao conflito na Síria.
A reação a esses ataques, pelos protagonistas em conflito na Síria, reflete sua
divisão profunda e sectária. Ambos – Hezbollah e 49 grupos de milicianos
anti-Assad – condenaram fortemente os ataques. Mas enquanto o Hezbollah vê o
ISIS como um produto do apoio a terroristas dado pelas monarquias do Golfo e
pela Turquia, as milícias declararam que Assad encontra-se no coração da
atividade terrorista na Síria.
Os ataques a Paris marcam a primeira ocasião que o ISIS saiu da Asia
Ocidental para organizar atentados no “inimigo distante” no Ocidente, indicando
assim que assumiu a agenda de jihad global da Al Qaeda. Novamente, embora ainda
não se saiba se os ataques a Paris foram realizados por membros locais do ISIS,
criados no país, ou se houve alguma participação de especialistas da liderança
central, é claro que o ISIS tem resiliência considerável e construiu, num curto
período, redes que o habilitam a penetrar o cordão de segurança nas nações
“desenvolvidas”.
Cumplicidade ampliada
As monarquias do Golfo Pérsico lideradas pela Arábia Saudita, a
Turquia e os EUA emergem desse imbroglio com pouco crédito. Os
sauditas têm continuam focados na mudança de regime na
Síria.Isso permitira transformar a guerra civil que se trava
lá num grande confronto sectário, no qual Riad apoiara grupos
jihadistas, incluindo o Jabhat al-Nusra (um grupo ligado à
Al-Qaeda) em sua guerra por procuração contra o Irã. O presidente turco
Recep Tayyip Erdogan,nas etapas iniciais do conflito sírio, estava
igualmente obcecado com derrubar Assad, visto como um defensor dos curdos
sírios contra a Turquia. Erdogan permitiu o livre fluxo de
jihadistas através da fronteira turca com a Síria, o que
reforçou as fileiras do ISIS.
A atitude dos EUA tem sido a mais débil e sem princípios: enquanto
inicialmente rejeitava o envolvimento militar direto na Síria, Washington deu
apoio aos sauditas, em troca do apoio das monarquias do Golfo a o acordo
nuclear com EUA-Irã. Por isso, os jihadistas dominaram a oposição ao governo
sírio. Muitos dos grupos anti-Assad negociavam suas armas com o ISIS ou
simplesmente juntavam-se a suas fileiras. Mais tarde, os EUA viram a entrada da
Rússia na Síria como uma ameaça à sua hegemonia global, e trabalharam com as
monarquias do Golfo para enfraquecer o esforço militar russo, fornecendo aos
terroristas mísseis TOW mais eficazes contra tanques russos.
Contudo, recentes relatórios dos EUA sugerem uma culpa ainda mais grave
por parte dos norte-americanos. O tenente-general Michael Flynn relatou, em
agosto deste ano, que, após o fracasso militar dos EUA no Iraque, em 2006, o
grupo de falcões norte-americanos conhecido como “neoconservadores” (neocons)persuadiu
o vice-presidente Dick Cheney a apoiar iniciativas para derrubar o regime de
Assad criando “uma cunha entre a Síria e o Hezbollah”. Isso seria feito apoiando
a criação de um “principado salafista” no leste da Síria. Segundo os
relatórios, foi o início do apoio da Arábia Saudita e de outras monarquias do
Golfo aos jihadistas sunitas no Iraque – que depois metamorfosearam-se em ISIS.
O Conflicts Forum, que publicou o relatório, conclui: “A
jihadização do conflito sírio foi uma decisão política ‘intencional’ [do governo
dos EUA].”
Em comentários públicos feitos em outubro de 2014, o vice-pesidente Joe
Biden colocou o dedo na ferida. Ele reconheceu: “…na Síria, nosso
maior problema foram nossos aliados na região.Estavam tão determinados a
derrubar Assad e promover uma guerra entre sunitas e xiitas …
[que] ofereceram centenas de milhões de dólares e dezenas, milhares
de toneladas de armamentos a qualquer um que lutasse contra
Assad. Não importava se estes grupos eram parte da Al-Nusra e Al-Qaeda, oujihadistas vindos
de outras partes do mundo.”
O caminho que o ISIS fez, da Síria a Paris, tem origem em Washington.
Tamiz Ahmad é ex-embaixador da Índia na Arábia Saudita,
Omane União dos Emirados Árabes.
FONTE:
Outras Palavras.
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