segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Sobre ser e estar no mundo: Caminhos possíveis

Severiá Idioriê 

Foi assim: acordei e com os olhos ainda fechados, comecei a colocar em prática "uma meditação". Levantei-me e ao olhar no espelho tentei encontrar uma beleza naquela imagem refletida. Não me achei bonita. Mas, queria olhar para mim e desejar um ótimo dia. Afinal, depois de estar lecionando na aldeia, iria ao banco receber meu salário de Minha pequenina aldeia fica nos cerrados do Mato Grosso, próxima à serra do Roncador. Estou vivendo nessa região há uns vinte e dois anos. É o meu lar. Lugar sagrado, cheio de estrelas, flores, pássaros, lagos, riachos e enormes gafanhotos no mês de agosto. A perfeição parece existir lá... Na “selva”.

Criada nos centros urbanos, estou hoje conseguindo me relacionar com este lugar. E, quando tenho que ir à “civilização” , confesso que meus sentimentos são um misto de pavor, excitação, medo, iguais às sensações que tenho ao assistir a um filme de suspense ou terror. Afinal, tenho vivido cada história!

Nosso caminhão, quando sai dos nossos domínios, passa por um portal e psicologicamente a gente se prepara para viver as aventuras. Quando estamos no caminho dentro da terra indígena, o cenário ainda é lindo, campos vastos do cerrado, céu azul com nuvens de algodão, verde, se o tempo é de chuva. Se não, o que vamos encontrar é uma poeira que nos tinge e somente os olhos permanecem da mesma cor, apenas um pouco avermelhados. Ficamos camuflados com a fina poeira, cabelos soltos ao vento ficam embaraçados e duros.

Ao chegar à cidade, descemos do caminhão com rapidez porque queremos voltar logo. Batemos o pé no cão, limpamos o excesso de poeira e ajeitamos os cabelos.Naquele dia, estava básica: short e camiseta branca fazendo uma propaganda qualquer. Sozinha caminho em direção ao banco, vejo que não há grande movimento porque é hora do almoço. Neste período do dia, cai o movimento, toda a população descansa porque o comércio local fica fechado, com exceção dos supermercados e restaurantes.

Fico alegre e vislumbro alguém conhecido que está na fila. Percebo que ela está acompanhada e para minha surpresa faz de conta que não me conhece. Sua companheira de conversa olha pra mim, de cima em baixo, leva a mão no nariz, levanta e abaixa a mão, gesticulando para cima e para baixo como que para espantar um mau cheiro, faz cara de nojo e suspira tipo: meu Deus! Fico incrédula por uns momentos. Lembrei-me da história que um velho amigo me contou e ouço suas palavras: dependência química é contornável, o que não é contornável é a falta de caráter. E adaptei suas palavras: “sujeira a gente limpa com qualquer sabão, mas o preconceito, não”. Imagino como foi difícil para Dom João VI e sua comitiva aprender a tomar banho, no nosso estilo Tupiniquim, diriam alguns. O conceito de limpeza, odores, beleza, muda muito. Cada cultura tem seu padrão. 

O que eu pensei e senti enquanto esperava minha vez? Minha primeira reação foi de raiva, depois pensei em apresentar-me e dizer-lhes que havia chegado recentemente de uma viagem dos estados Unidos, passado por São Paulo e que eu havia tomado banho quando saí de casa naquela manhã. Dizer pra ela que como representante dos trabalhos de meu povo, conheci favelas, castelos na Europa, hotel cinco estrelas e até havia recebido as chaves da cidade de Nova Iorque. Mas... Sorri e lembrei das palavras  sábias do avô do meu marido, grande sábio, Apowê, aquele que enxerga longe: “somos de uma linhagem antiga, de tempos imemoriais. 

Sabemos quem somos e para onde devemos ir. É preciso saber andar neste mundo com sabedoria. É preciso aprender o segredo de Ser e Estar no mundo. Pensar, sentir e agir consigo e com os outros de modo que a vida seja leve, alegre, em comunhão com tudo que existe no mundo, no planeta. Que há um caminho longo para uns, curto para outros...caminhos que nos levam a uma compreensão da nossa existência. Mas , que ao mesmo tempo, muitas vezes não conseguiremos de imediato chegar a uma conclusa.”

Quando alcancei o caixa eletrônico, pensei: adoro meu cheiro e minha pele. Genética herdada dos tempos imemoriais. Criada pelo Grande Alquimista que escolheu que viéssemos todos, cada um, em particular, com cheiros e gostos que nos fazem únicos neste universo da Via-Láctea. Sorri lembrando os cheiros dos amigos, da família, dos campos cerrados... Que me permitem ser e estar no mundo.  

LEETRA INDÍGENA. Antologia dos Morogetás: Olhares indígenas. Revista do Laboratório de Linguagens Leetras da Universidade Federal de São Carlos. Volume 02, n: 02. 2013. p. 74-75.


Severiá Idioriê é escritora e pensadora indígena do povo Carajá, de Tocantins. Graduada em Letras, trabalha como professora e coordenadora do Ponto de Cultura na Terra indígena Xavante de Pimentel Barbosa, onde reside.

Nenhum comentário:

Postar um comentário