quinta-feira, 29 de outubro de 2015

RUTH DE SOUZA: AUTO RETRATO




Redação - Revista Black Brasil - Ela tem porte de rainha. E faz parte da realeza da TV brasileira. Ruth de Souza, aos 84 anos (perdoe a indiscrição, diva!), é altiva, simpática, sincera ao extremo, sem temores de dizer o que pensa. Nunca se casou, nem teve filhos. Mora sozinha, há mais de duas décadas, num apartamento no Flamengo, Zona Sul carioca, e garante que nunca se sente só: “Tenho meus livros, muitos filmes, meus sobrinhos, estou sempre entretida”. A única reclamação é o fato de não atuar a algum tempo na TV. O AVC que a atriz teve há dez anos deixou sequelas: dores na perna e uma certa dificuldade de permancer em pé por muito tempo. Ela faz hidroterapia e acompanhamento médico. Contratada da Rede Globo há mais de 40 anos, Ruth só quer uma coisa da vida: voltar a atuar na TV. Chegou a ser convidada para Suburbia, mas não pôde aceitar, na época. Recentemente fez uma participação no filme Primavera, de Carlos Porto, em fase de finalização. Mas as luzes dos estúdios do Projac fazem falta para iluminar ainda mais a vida dessa guerreira.

Entrevista de Simone Magalhães(fotos: Fco. Patrício)

NOVELAS – “Eu tinha vindo de teatros, ao vivo, na Tupi e na Record, mas, em 1965, estreei em novelas, na Excelsior. Foi em A Deusa Vencida, com Glória (Menezes), Tarcísio (Meira) e Edson (França), nos papéis principais. Foi uma experiência muito interessante. Três anos depois, aceitei o convite da Globo em São Paulo, onde morava, para fazer Passo dos Ventos, de Janete Clair. Mas posso dizer que das quase 30 novelas nas quais trabalhei, a que ainda se referem mais é A Cabana do Pai Tomás (1969), na qual eu fiz a primeira protagonista negra, a Cloé. Várias pessoas reclamaram e criticaram o fato de Sérgio Cardoso ter que se pintar de negro para fazer o papel, mas o que muita gente não sabe é que isso era imposição da patrocinadora e contratante Colgate-Palmolive, que o queria como protagonista”. “Mas, olhando pra trás, tenho boas lembranças de Os Ossos do Barão (1974), O Grito (1975), que tinha uma boa temática, mas que não foi entendida pela maioria, e as duas vezes que fiz Sinhá Moça, na TV (1986 e 2006). Com a do cinema são três! Não posso me queixar: já fiz professora, auxiliar de enfermagem, neta de barão, juíza…”





SINCERIDADE – “Devo ser uma pessoa muito esquisita… Não brigo, nem discuto: eu cobro. Às vezes, acho que posso estar me excedendo, mas é o que eu penso e preciso falar. Por exemplo, pedi pra sair de O Rebu (1974), e disse que o papel era ruim, que ia depor contra tudo de bom que já havia feito. Sinal de Alerta (1978) não gosto nem de me lembrar: uma novela pesada; pediam pra gente não lavar o cabelo, era aquela fumaça de poluição o tempo todo… As duas foram dirigidas pelo (Walter) Avancini, que era muito grosseiro, tratava mal os atores. Um dia, ele chegou pra mim e disse: ‘Você tem duas opções: ou aceita fazer a novela ou acabará sendo mandada embora’. Só respondi que, naquele momento, precisava trabalhar. Uma vez, a Lélia Abramo foi comentar com ele que ganhava menos do que muitos iniciantes, e teve que ouvir: ‘Porque você é velha e feia’.


BONS TEMPOS – “Tempo bom era o do Boni (José Bonifácio de Oliveira, ex-vice presidente de operações da Rede Globo). A gente marcava um horário pra falar com ele, e estava sempre solícito, disposto a ajudar. Hoje, a gente nem sabe a quem procurar… Sou muito grata ao Boni porque eu tinha comprado um apartamento em São Paulo, pelo BNH. E estava dividindo com um amigo – amigo da onça, né? -, um dançarino, que conhecia há algum tempo. Um dia, recebo o aviso que ia perder o apartamento, que várias prestações ele não havia pago. Fui até o Boni, expliquei a situação, e ele, prontamente, deu a solução: ‘Eu demito você da Globo em São Paulo, e a contrato, em seguida, no Rio’. Recebi todos os meus direitos trabalhistas, juntei com um dinheirinho que tinha na poupança, e quitei o apartamento.”

“Aliás, meu maior orgulho foi poder ter construído – e idealizado todinha – uma casa pra minha mãe, no Engenho de Dentro. Hoje, minha irmã e a família dela moram lá. Ah, e ter comprado esse apartamento onde moro. Sempre fui muito de planejar as coisas, de buscar uma forma de concretizar o que queria: tive uma infância maravilhosa, muitos amigos, sonhei em ser atriz e consegui, comprei a casa própria, e quero voltar a trabalhar. Isso me faz muita falta!”.


INDEPENDÊNCIA – “As pessoas falam demais. Como sempre mantive minha vida pessoal muito discreta, viviam inventando namoros. Nunca namorei o Abdias do Nascimento, nem o Sérgio Cardoso. Acredito na amizade entre homem e mulher. Posso passar horas e horas conversando com um amigo, e não acontecer nada. Tive namorados e algumas paixões, fora do mundo artístico. O Lan (cartunista), por exemplo, foi uma delas. É uma pessoa maravilhosa. Mas acabou se casando com outra. Fez a escolha dele. Os outros não deram certo porque, geralmente, eram machistas, queriam que eu deixasse a carreira, me dedicasse totalmente ao relacionamento. Mas eu não faria – e não faço – isso por homem nenhum. Gosto de ter minha profissão, minha independência, minha vida. E não sinto falta de filhos porque tenho meus sobrinhos, os filhos deles… (risos)





IMAGEM – “Não levanto bandeiras, mas procuro sempre passar uma imagem positiva da mulher negra. Nunca briguei, discuti ou fiz campanhas. Acho que a postura é importante. Por exemplo, eu me visto sempre de maneira clássica. Você nunca me vê de jeans ou peças espalhafatosas. São roupas que tenho há algum tempo, e outras que compro em São Paulo, mas não me guio por moda, e sim pelo que me deixa bem para qualquer ocasião. Há uma atriz da nova geração que tem postura e admiro, a Cris Vianna. Foi muito bem no filme Última Parada – 174 (2008). E tenho uma admiração enorme pela Glória Maria, que é corajosa, inteligente…e também não gosta de dizer a idade! (risos)”.

O QUE FALTOU – “Lembro-me de que nas aulas de teatro, tinha uma professora que dizia: ‘Ninguém compra um sabonete com embalagem sem graça, sem atrativos. Deve ser sempre interessante’. Demorei a descobrir que ela tinha razão. Se eu pudesse voltar no tempo, acho que venderia melhor o meu trabalho, faria melhores contratos.”


INFÂNCIA – “Minha mãe, Alaíde, morava no Rio, mas casou-se com meu pai, Sebastião, que tinha um sitiozinho em Laranjais, interior de Minas. Logo depois que nasci, no Engenho de Dentro, Zona Norte carioca, nos mudamos para lá. Lembro-me de que minha mãe contava que eu mamava numa cabra.(risos) Foi uma infância muito bonita, de lembranças poéticas. Quando mamãe falava, com saudade, sobre as luzes do Rio de Janeiro, de como a cidade era movimentada, eu tentava pegar vagalumes e colocá-los em fila pra recriar o que seria o Rio iluminado. Mas eles fugiam e eu corria atrás (risos). Quando tinha 9 anos, meu pai faleceu, voltamos para o Rio, e moramos numa vila em Copacabana, onde viviam jardineiros e lavadeiras de famílias ricas. Mamãe passou a lavar roupa para sustentar a mim e a meus irmãos Maria, quatro anos mais nova do que eu, e Antônio, já falecido.”




ENCANTAMENTO – “A cidade era linda, mas o que me deixou encantada mesmo foi ir pela primeira vez ao cinema. Minha mãe me levou para ver Tarzan, O Filho das Selvas, com Johnny Weissmuller. Sempre fui curiosa, e queria saber tudo! Como aquelas imagens apareciam na tela, meu Deus? (risos). Todo dinheirinho que mamãe juntava, com dificuldade, lavando roupa, era usado para o cinema, para ver as operetas no Municipal e programas culturais. Ela gostava de passar a roupa ouvindo o rádio, que transmitia operetas. Me lembro tanto da Viúva Alegre… Eu ia ao cinema quase todo dia: entrava na sessão das 14h, e ficava até a das 18h. E minha mãe, na porta, me chamando pra ir pra casa”. (risos)


ESTUDOS – “Com tudo isso, não descuidava dos estudos. Primeiro cursei a Escola Júlio de Castilhos, na Gávea, e, depois, um colégio de freiras, na Tijuca, onde fiz o ginásio. Uma vez, minha mãe foi me visitar no colégio, e levou aquele doce puxa-puxa, que eu adorava. Chamei duas amigas pra dar um pedaço a cada uma. Mas todo mundo queria, e não ia sobrar nada pra mim. Acabei ficando de castigo! Lá, não podíamos cantar marchinhas de carnaval – músicas ‘profanas’ – que também éramos castigadas. Sabe qual o castigo? Passar um tempo sentada no banco da capela do colégio. Mas não me incomodava, não… Ficava lá, pensando sobre a vida.”

“Nunca fui rebelde. Sempre entendi o sacríficio que minha mãe fazia para nos criar. Teve um ano que pedi a Papai Noel um par de patins, mas vieram umas roupas e um sapatinho, que ela deve ter ganhado de uma patroa. Fiquei desapontada a princípio, mas depois entendi quem era Papai Noel.”


TEATRO – “Muita gente ria, debochava, quando dizia que ia ser artista, porque eu era negra. Mas não me incomodava, porque tinha certeza de que conseguiria. Sempre lutei muito pelos meus sonhos, e dei sorte de encontrar pessoas que também me ajudaram a concretizá-los. Aos 17 anos, em 1945, ao ler a revista O Rio, que era do Dr. Roberto Marinho, e comentava o que estava acontecendo na cidade e com a sociedade, vi que um grupo de negros havia montado o Teatro Experimental do Negro (TEN) e ensaiava na União Nacional dos Estudantes (UNE). Fui lá, com a cara e a coragem, e falei com Abdias do Nascimento, um dos fundadores. Aliás, é bom esclarecer que nunca namorei o Abdias, como muita gente pensa. Ele tentou, sim. Mas eu era virgem, e só queria saber da minha carreira. Depois, ele se casou algumas vezes, uma delas com minha amiga Léa Garcia, excelente atriz. Fiz um teste no TEN e consegui o papel de escrava na peça O Imperador Jones, de Eugene O´Neil.”


ESTREIA – “Nós não tínhamos dinheiro, e era preciso pagar os direitos autorais de O Imperador Jones. Na hora, sugeri que deveríamos escrever uma carta a O´Neil, contando quem éramos e pedindo que ele nos desse os direitos do espetáculo. Foi a única ideia que me veio à mente, sem pensar que poderíamos nem ter resposta. Abdias escreveu a carta, e o autor nos enviou uma outra liberando todas as suas peças para o nosso grupo. Imagina isso? Assim, em 8 de maio de 1945, dia do fim da Segunda Guerra, estreamos O Imperador Jones no palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, depois de um pedido ao prefeito (Henrique Dodsworth), para usar o local. Lá fora, uma euforia: rojões, tambores, parecia carnaval na Avenida Rio Branco. Você pode imaginar a minha emoção? Fomos notícia em todos os jornais! Eugene O´Neill era pai da então esposa de Charles Chaplin. E teve manchete do tipo: ‘Sogro de Chaplin cedeu direitos de suas peças para o Teatro Experimental do Negro aqui do Brasil.’

“Eu não tinha o menor problema em ir às redações levando o texto de divulgação das peças do TEN. Entregava ao Dr. Roberto em O Globo, ao Samuel Wainer – que ficou muito meu amigo – na Última Hora, ia à Tribuna da Imprensa, do Carlos Lacerda, passava aos editores do Correio da Manhã, de A Noite… E ainda ia às embaixadas, com uma lista feita pelo Paschoal Carlos Magno (teatrólogo e diplomata), para vender ingressos aos embaixadores.

Era um pouco tímida, mas nessas horas tinha muita coragem (risos). O TEN foi uma bela experiência. Fui a primeira Desdêmona negra (na peça Otelo, de Shakespeare); apresentamos Calígula para o autor, Albert Camus, quando ele esteve no Brasil, em 1949; e Nelson Rodrigues escreveu O Anjo Negro para nós.”





SORTE – “Sempre tive muita sorte. Além ir aos encontros culturais nas casas de Aníbal Machado e Alvaro Moreyra, passei a frequentar o bar Vermelhinho, em frente à Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Centro, e lá jornalistas, pintores da Escola de Belas Artes, e atores que se apresentavam no Teatro Ginástico, iam tomar um café, às 17h, para depois seguirem para o trabalho ou para casa. Era um festival de cultura, de ótimas conversas e muita gente boa, como Portinari, Manoel Bandeira, Ziembinski e tantos outros. Jorge Amado, por exemplo, me indicou para fazer o filme Terra Violenta, com Grande Otelo e Anselmo Duarte; Paschoal Carlos Magno me indicou para uma bolsa de estudos de teatro, oferecida pela Fundação Rockfeller, nos EUA; Vinícius de Moraes, ao saber disso, me deu uma carta com vários nomes de amigos dele na embaixada em Washington, que poderiam me ajudar em caso de necessidade. E é claro que fui pra lá.”


AMÉRICA – “Depois de dois filmes com o Grande Otelo, na Atlântida, fui chamada para a trabalhar na Vera Cruz, em São Paulo. Lá, fiz cinco longas. Até hoje sou amiga da Inezita Barroso e da Eliane Lage, que trabalharam comigo. Mas, em 1950, falando um inglês mais ou menos (risos) fui para a América. Sabe, quando eu era garota tinha visto uma foto na Life com estudantes negros, na universidade de Harvard. Guardei até o recorte. Durante muito tempo meu sonho era frequentar um lugar como aquele. Anos mais tarde, quando fui estudar nos Estados Unidos, me senti como se estivesse naquela foto (emociona-se).”

“Cheguei em Cleveland, para estagiar na Karamu House. Saía de casa às 8h, e voltava às 22h30. Fazíamos aula de dança, canto, música, cenografia, assistência de direção, história do teatro… Depois de um mês lá, estreei um espetáculo falando inglês. E pintava cenário, fazia iluminação, fui assistente de direção de Porgy and Bess, e de The Shadow of a Gunman. Atuei como atriz em Dark of the Moon e Street Scene. Depois, fui pra Havard, onde fiquei dois meses. Em seguida, pra Nova York: mais dois meses na Academia Nacional de Teatro Americano. E, quando estava na época de voltar ao Brasil, a Vera Cruz me chamou pra filmar Sinhá Moça, que acabou ganhando o Leão de Prata, em Veneza, em 1953. Fui a primeira brasileira indicada para o prêmio de melhor atriz no festival. Lilli Palmer ganhou, mas, pra mim, foi uma grande vitória!”





CINEMA – “Depois da decepção de atuar em Candinho (1954), com Mazzaropi – comédia não era o meu estilo, e ele (Mazzaropi) era muito deselegante em cena, nem um pouco generoso: queria encobrir a pessoa com quem contracenava -, fiz alguns trabalhos, mas tem um que adoro: O Assalto ao Trem Pagador. Aliás, gosto muito de trabalhar com o Roberto Faria (diretor). Quando ele veio me falar que eu ia fazer a Judith, amante do Tião Medonho (Eliezer Gomes) – que não era ator, mas poderia ter se tornado, porque se saiu muito bem no filme – disse que preferia fazer a esposa dele. Conversamos muito, aí, peguei o texto, contei direitinho e vi que a atriz (Luiza Maranhão) tinha o mesmo número e falas do que eu. Aceitei o papel, mas dei um tom tão amoroso, tão dedicado àquele homem, que, no final, parecia que eu era a esposa, e não ela (risos).”

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