Carolina
de Assis | São Paulo - 11/09/2015 - 09h40
Em sua
primeira visita a SP, filósofa norte-americana falou sobre violência policial e
alianças entre movimentos sociais e comentou polêmica sobre gênero e
diversidade sexual no currículo escolar: 'exclusão do tema é uma forma de
censura'
Alexandre
Gonçalves Jr / Sesc São Paulo
Judith
Butler durante a entrevista coletiva que precedeu sua conferência no I
Seminário Queer, no Sesc
Vila Mariana, em São Paulo
Em 1990,
a filósofa norte-americana Judith Butler publicou nos Estados Unidos o livro Gender
Trouble. Editada no Brasil com o título Problemas de Gênero, a obra rapidamente se tornou um
dos pilares dos estudos feministas e da teoria queer. No início de setembro, 25
anos depois da publicação de seu mais conhecido trabalho, Butler finalmente
veio ao Brasil para um debate público sobre os temas que a movem: identidades,
vulnerabilidades e resistências.
Após
participar de congressos em São José do Rio Preto e Salvador, a filósofa
apresentou nesta quarta-feira (09/09) a conferência magna do I Seminário Queer,
realizado no Sesc Vila Mariana, em São Paulo. Organizado pela revista Cult e
pelo Sesc, o evento propôs debates sobre a superação das fronteiras sexuais e
de gênero e suas implicações na cultura e na sociedade.
Judith
Butler é um nome central neste universo por suas contribuições aos estudos
feministas e queer, especialmente com a noção de gênero como performatividade e com a crítica do que ela denomina matriz
heterossexual. A primeira sugere que gênero é ação – muitas e diferentes ações
que, repetidas ao longo da vida, nos levam a reiterar nossa identificação com
certo gênero e expressá-la ao mundo. Já a segunda estabelece como norma a
conexão entre sexo, gênero e desejo em uma lógica voltada para a reprodução da
espécie: uma pessoa com pênis é necessariamente um homem, que deve
necessariamente sentir desejo por mulheres, que por sua vez são pessoas que
necessariamente têm vagina e que necessariamente sentem desejo por homens.
Qualquer
existência que não obedeça a essa norma é considerada desviante. Entre estas
existências estão pessoas lésbicas, gays, trans e intersex que, assim como
muitas feministas, encontraram na obra de Butler mais um instrumento para
perturbar normas identitárias e sexuais que limitam possibilidades de vida e
que estão no centro da violência contra mulheres e pessoas LGBTI.
“Meu trabalho com a teoria queer sempre
interagiu com um movimento social mais abrangente”, comentou Butler durante a
entrevista coletiva que antecedeu sua intervenção no seminário. “O aspecto dos
estudos queer que eu mais valorizo diz respeito às alianças. Queer não é uma
identidade. Você pode dizer ‘eu sou queer’, mas é muito estranho dizer isso.
Acho que queer é uma maneira de nomear um movimento que toma uma direção
diferente daquela esperada. Então pertencer a um movimento queer é contestar as
normas dominantes e o processo de normalização que torna tão difícil para
pessoas lésbicas, gays, bissexuais, intersex, trans, viver mais aberta e
facilmente e aparecer no espaço público.”
Para a
filósofa, as alianças que caracterizam o movimento queer vão além das questões
sexuais e de gênero. “Recentemente eu tenho sentido que o ativismo queer é mais
eficiente quando se alia a grupos de pessoas que estão lutando contra a
precariedade econômica e a privação política. E acho que a ideia de alianças
que é tão importante para o movimento queer deve continuar se expandindo, para
que a gente possa construir uma esquerda que se oponha a crescentes
desigualdades econômicas, racismo, homofobia e sexismo. Acho que essa é uma
maneira de pensar em coalizões em toda a sua complexidade e com todas as suas
dificuldades.”
Esta foi
a principal questão abordada pela filósofa em sua conferência, intitulada Rethinking
vulnerability and resistance (“Repensando a vulnerabilidade e a
resistência”, em tradução livre). Butler explicou que hoje tem se dedicado
principalmente à questão da precariedade e às mobilizações globais contra as
desigualdades econômicas, sociais e políticas, que produzem cada vez mais
populações “designadas como dispensáveis e indignas de luto”.
Alexandre Gonçalves Jr / Sesc São
Paulo
O filósofo brasileiro Vladimir Safatle e Judith Butler no palco do
teatro do Sesc Vila Mariana durante o I Seminário Queer, nesta quarta-feira
(09/09)
Nesse
sentido, os movimentos e as políticas denominados queer podem seguir fazendo
sentido se a palavra mantiver pelo menos dois sentidos, diz Butler: “um deles
diz respeito a divergência, desvio da norma, se abrir para possibilidades; o
segundo diz respeito à aliança entre grupos de pessoas que não teriam muito em
comum e entre os quais há inclusive, às vezes, desconfiança e antagonismo.”
Este último sentido abarca também a “afirmação de diferenças que não podem ser
superadas por uma identidade unificada”.
“Nem toda
aliança é amor. Às vezes nós nos aliamos para estabelecer o direito de amar e
viver sem ser submetido a violência”, e isso não significa “que nós amemos e
desejemos” todas as pessoas a quem nos aliamos. Em alusão a tensões dentro do
movimento LGBT e dos movimentos sociais como um todo, Butler lembrou que
“alianças são difíceis” e que “atuar em conjunto não pressupõe nem produz uma
identidade coletiva”, mas sim uma série de relações que “incluem apoio,
disputas, rupturas e solidariedade.”
Gênero na
escola: medo e fascínio
O mais
quente debate sobre gênero e sexualidade no Brasil no momento diz respeito à
inclusão destes temas no currículo escolar, e Butler foi instada pela plateia a
falar sobre o assunto. Como era de se esperar, as pessoas que apoiam e
trabalham pela discussão da temática com crianças e adolescentes em prol de uma
educação que acolha a diversidade sexual e de gênero e problematize a violência
contra mulheres e pessoas LGBT estavam muito bem representadas na plateia que a
ouvia. Aqueles que são contrários à inserção do debate de gênero e diversidade
sexual nas escolas também se fizeram representar, através de um inusitado
protesto pouco antes da apresentação de Butler.
Cinco
manifestantes – membros do Instituto Plínio Corrêa de Oliveira, que se define
como uma entidade “em defesa dos valores da civilização cristã” – se postaram
em frente ao Sesc Vila Mariana com uma bandeira do Brasil e um
estandarte. Ao som de uma gaita de foles, eles carregavam cartazes denunciando a “ideologia
de gênero” e a “ideologia homossexual” nas escolas, prelúdios da “destruição da
família”.
Imagem
via Revista Cult
Os manifestantes contra a "ideologia de gênero" em frente ao Sesc Vila Mariana
Os manifestantes contra a "ideologia de gênero" em frente ao Sesc Vila Mariana
Butler
comentou o medo que o debate de gênero e diversidade sexual incute em setores
que desconhecem os conceitos e seu potencial libertador – ou temem exatamente
isso – e se utilizam de argumentos pseudorreligiosos ou pseudocientíficos para
fundamentar sua oposição. “A exclusão do tema das políticas educacionais me
parece uma forma de censura, com o objetivo de abafar a conversa sobre as
maneiras diversas em que vivem os gêneros e com o intuito de estabelecer que,
seja qual for o seu sexo, ele corresponde ao que está na Bíblia ou ao que
determina alguma versão da ciência que esteja de acordo com o que está na
Bíblia. A censura ao tema é claramente um ato de medo.”
A
filósofa lembra também que a determinação sexual e a formação das identidades
de gênero são tópicos calorosamente disputados e discutidos entre cientistas.
“A comunidade científica tem diferentes e complexas visões sobre a determinação
sexual e cientistas brigam o tempo todo sobre isso. Este é um tema muito
disputado dentro da ciência. Então por que esses debates não devem ser
conhecidos e discutidos? Isso também é ciência. Sabemos que a categoria ‘sexo’
muda ao longo da história e em diferentes lugares do mundo; por que isso não
deve ser discutido? Por que não seria interessante e útil saber sobre as diferentes
maneiras que as pessoas pensam sobre sexo? Não apenas a versão da religião ou
uma versão única e reducionista da ciência. Em nome da investigação intelectual
aberta, deveria ser obrigatório o ensino de gênero.”
Para além
da ignorância sobre os conceitos e os fundamentos das teorias de gênero e
sexualidade, Butler aponta que o temor dos conservadores tem muito de fascínio.
“Quando você começa a censurar uma palavra, ‘gênero’, é porque essa palavra é
considerada muito poderosa. Então eles estão atribuindo certo poder a essa
palavra. Como se, se uma jovem aprender que ela pode mudar de gênero, ela vai
de fato mudar de gênero imediatamente. Se um ou uma jovem aprender sobre a vida
das pessoas gays ou das pessoas lésbicas, aquele ou aquela jovem vai se tornar
gay ou lésbica. Eles imaginam que o que quer que seja que nós estamos fazendo é
tão atraente e tão poderoso que os e as jovens não vão conseguir resistir. E
que todas e todos serão recrutados em um grande exército de lésbicas, gays e
pessoas trans. É uma grande fantasia.”
“Regime
de violência legal”
A
filósofa comentou também os protestos contra a violência policial em seu país,
em especial o movimento Black Lives Matter, conectando-o ao
contexto brasileiro. “No Brasil vocês vivem com o fato de que milhares de
pessoas são mortas anualmente pela polícia e menos de 1% desses assassinatos
geram ação penal.” Para Butler, esse “regime de violência e cumplicidade
policial” deve ser compreendido internacionalmente. “Isso nos possibilita não
só formar redes globais de solidariedade e protesto contra esse tipo de
violência, mas também observar como o racismo funciona no sentido de permitir
que algumas populações sejam livremente assassinadas enquanto outras são
intensamente protegidas.”
Este
“regime de violência legal”, diz Butler, afeta também a vida de pessoas trans e
queer e mulheres, que são “desproporcionalmente vulneráveis a mortes
violentas”. A filósofa trouxe alguns dados sobre a realidade dessas populações
no Brasil: segundo o Instituto Avante, cerca de 40 mil mulheres foram
assassinadas entre 2001 e 2010, e o país é o líder no mundo em assassinatos de pessoas trans, de acordo com a iniciativaTrans
Murder Monitoring.
“Nós
podemos e devemos produzir mais números sobre isso, mas números têm sempre um
contexto e podem sempre ser desconsiderados, além de não serem capazes de
produzir, por si só, uma análise.” Para Butler, “no Brasil não está em curso
apenas um terrorismo sexual e de gênero que tem a violência e a cumplicidade da
polícia em seu cerne, mas também a longa história do racismo, as reverberações
constantes da escravidão na vida cotidiana, e a designação de algumas
populações como dispensáveis e indignas de luto, disponíveis para serem
assassinadas com impunidade.”
Essas
populações vivem um paradoxo político, diz a filósofa: sua vulnerabilidade pode
e deve ser ressaltada, o que incorreria em vitimização e no clamor por proteção
legal, exemplificado pela lei do feminicídio, sancionada em março pela
presidenta Dilma Rousseff. Mas a insistência nesse paradigma pode,
involuntariamente, apagar o histórico de resistência cotidiana de mulheres,
minorias étnico-raciais, pessoas trans e queer e trabalhadoras do sexo. “Não
quero subestimar a importância de novas leis, mas se elas são instituídas
dentro de um regime legal que exercita sua própria forma de violência, quais
são as implicações disso para o objetivo final de mudar as estruturas sociais
de racismo, misoginia, homofobia e transfobia que levam à produção e à
reprodução de vidas indignas de luto?”
Questionada
pela platéia sobre a demanda de criminalização da violência contra pessoas LGBT
por parte do movimento social no Brasil, Butler se diz resistente à medida. “É
muito difícil ser a favor do aumento da população carcerária. Não acho que o
encarceramento seja a resposta para a violência contra pessoas LGBTQ. Também
por isso nós devemos ter uma análise mais complexa da violência legal: a
prisão, junto com a polícia, é um dos maiores instrumentos de violência legal
em diversos países.”
Ela
apontou que a criminalização individualiza a violência, criando “aberrações”.
“A violência contra mulheres, pessoas LGBTQ, minorias étnico-raciais,
trabalhadoras sexuais e migrantes é a expressão de uma violência institucional
mais abrangente, de formas mais abrangentes de racismo, sexismo, homofobia,
xenofobia. As prisões e os tribunais não vão reconhecer que a violência contra
mulheres e pessoas trans é endêmica na sociedade. Elas vão criar indivíduos
criminosos e dizer ‘é apenas essa pessoa, e essa pessoa, e essa pessoa’. Então
elas vão se exonerar da responsabilidade ao criminalizar indivíduos e isolá-los
da sociedade.”
Butler propõe,
mais uma vez, um paradoxo, lembrando também que a polícia e o sistema legal
acabam sendo cúmplice de diferentes violências ao escolher não investigá-las e
processá-las. “Talvez possamos perguntar: ok, uma vez que a pessoa foi presa, o
que acontece? Angela Davis [escritora e ativista feminista norte-americana] tem
uma ideia de justiça restaurativa fora do sistema prisional. Há diferentes
maneiras de lidar com essas situações que não necessariamente envolvam o
encarceramento.”
FONTE: Opera Mundi
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