terça-feira, 1 de setembro de 2015

Leia transcrição da íntegra da palestra de José Mujica na Universidade do Estado do RJ

José Mujica | Rio de Janeiro - 30/08/2015 - 15h43


Mais de 10 mil foram à UERJ na sexta-feira (28/08/2015) à noite assistir fala do ex-presidente e senador uruguaio: 'para mudança, precisamos de seres coletivos e superação do individualismo'
Queridos,



Agradeço a vocês o calor que me prestam, por sua juventude, pelas lembranças de tantos e tantos estudantes que foram ficando pelos caminhos de nossa América Latina. Recebam o agradecimento de um velho de 80 anos que uma vez foi jovem. E lembrem-se: as repúblicas surgiram pelo sonho de que as maiorias mandem. Vivemos no continente mais injusto, porém mais rico em recursos naturais do mundo. A minha geração não conseguiu, mas vocês têm de continuar defendendo a bandeira da igualdade.

Lembrem-se que estão vivos porque nasceram, mas o mercado pode roubar a sua vida. Esse é o dilema: ter consciência e escolher o rumo, ou deixar que o mercado trace o seu rumo. A escolha é de vocês. Não há nada mais lindo que a vida, mas é preciso defender a liberdade de viver. Não deixem que roubem sua liberdade. A liberdade não se vende! A liberdade se ganha fazendo algo pelos demais, sem mandar a conta. Isso se chama solidariedade. Sem solidariedade, não há civilização.

Devemos viver nessa contradição fenomenal: nunca o homem teve tanto. É possível mudar a natureza. É possível salvar o planeta. É possível povoar os desertos. É possível cultivar o mar. É possível esparramar a vida humana pelo universo, mas, para isso, é preciso começar a pensar como espécie. Não só como país. É preciso assumir a humanidade, o mundo inteiro. Os pobres da África não são “da África”, são nossos! Os que morrem no Mediterrâneo tentando atravessar são nossos. Compatriotas são todos os abandonados que existem no mundo, todos os esquecidos, porque pertencem à nossa espécie, embora não se dêem conta, embora estejam cheios de egoísmo e de miséria.

É a hora de um continente diferente, de uma civilização diferente. Não temos que imitar a Europa, nem o Japão. Não podemos querer o desenvolvimento com dor, o desenvolvimento com angústia. Desenvolvimento com felicidade para todos. A generosidade é o melhor negócio para a humanidade. E o pior negócio são os bancos.

Às vezes, a dor ensina mais que o triunfo. Pode-se viver com os justos, pode-se viver com sobriedade, e pode-se viver com sobriedade para ganhar a liberdade. Você não pode gastar sua vida trabalhando apenas para pagar prestações. É preciso usar um tempo para trabalhar, porque, se você não trabalha, você fica dependendo de alguém que trabalha. A solidariedade é companheira da responsabilidade. Mas não se pode trabalhar todo o tempo. A Bíblia diz: “Viverás com o suor de tua testa”. Mas ninguém nasceu só para suar. A gente nasce para viver. Portanto, a pessoa tem que ter tempo para o amor, para os filhos, para os amigos. Se a sua vida se resume em trabalhar horas e horas para pagar prestações, você se transforma em um objeto do mercado, você perde a liberdade.

Queridos, esta etapa da sociedade capitalista precisa de uma cultura coerente com seus interesses e esta cultura é o hiperconsumo. Cada um tem de ser um comprador eternamente escravizado, que compre e fique sonhando em voltar a comprar, porque confunde consumismo com felicidade.

Nenhum governo vai resolver isso! Só a sua consciência pode resolver isso. Ou você deixa que te controlem ou aprende a se controlar. Isso é como a criança que tem de atravessar a rua. Você pode pedir para ela ir devagar”, mas é melhor que el aprenda sozinha a atravessar a rua. Você tem de aprender a conviver com o mercado sem deixar que ele roube a sua liberdade. Isso se chama “vontade”. Toda manhã, quando levantar, faça dez minutos de reflexão para analisar se o que você está bem ou está mal. Nunca haverá um mundo melhor se não lutarmos para melhorar-nos a nós mesmos. A minha geração confundiu toneladas de aço e de cimento com felicidade humana. A de vocês não precisa repetir o mesmo erro porque pode aprender com nossos erros. Vocês têm de cometer os seus, não os nossos.

Vocês precisam lutar no campo da cultura porque não se consegue mudança no mundo material sem mudança cultural. Por maior que seja a mudança material, continuarão submissos se não mudarem a cultura deles. A submissão está na cabeça, mas é também na cabeça que está a liberdade. Eu aprendi isso com a solidão do calabouço. E aproveito para transmitir a vocês para que façam suas vidas.

A nossa América pode ser um continente lindo, de carinho, paz e solidariedade. Começamos tarde mas podemos ver que o mundo que eles fizeram tem ciência e tecnologia como nunca se teve, mas a ciência e a tecnologia só é positiva se tiver alma, se tiver consciência. Acontece que a civilização atual tem caixa-forte para guardar o dinheiro mas não tem consciência!

Uma mudança de cultura é uma mudança civilizatória. Ela exige uma batalha muito maior do que se pensou no meu tempo. Esta mudança precisa de gente dedicada que seja capaz de sonhar com um mundo melhor e de lutar passar a vida lutando por ele.

Aos 80 anos, não vi, aqui buscar aplausos. Venho acender a chama da militância pelas causas nobres. Não há homem insubstituível: há causas insubstituíveis. E essas causas precisam de homens para defendê-las coletivamente de forma organizada. Nós seres humanos somos gregários. Precisamos de ferramentas coletivas para tentar modificar a realidade. As pessoas sozinhas, isoladas, por mais geniais que sejam, são apenas franco-atiradores e os franco-atiradores não conseguem ganhar as batalhas. São as massas que ganham. Esta compreensão é necessária.

É preciso criar ferramentas políticas de compromisso coletivo e aprender a dor de andar coletivamente, o que muitas vezes significa aprender a perdoar, porque ninguém é perfeito. E para que exista mudança são necessários gigantescos seres coletivos. É preciso superar o individualismo e criar consciências coletivas, se querem ter força para incidir na sociedade. É preciso ter clareza sobre quem é o adversário principal e quais são as pequenas diferenças com relação aos nossos parentes e nossos amigos, para não transformá-las na causa principal, porque se agirmos assim estamos nos atomizando e, atomizados, somos fracos. É preciso construir confiança. A confiança no continente está afetada. Você deve viver como você pensa, porque, do contrário, você termina pensando como você vive. Mas se você viver de acordo com as formas e valores da minoria privilegiada, depois de algum tempo você acabará pensando como esta minoria. Não se pode lutar pela justiça, pela igualdade, pelo fim da pobreza, olhando a pobreza de cima para baixo. É preciso aprender a conviver com a sociedade assim como ela é. Isso significa que você tem de viver de corpo e alma de acordo com os valores da maioria. Assim, quando a maioria melhorar, você também melhora, mas não antes.
É preciso mudar a idéia de pobreza e de riqueza. Pobres são os que precisem de muito e ricos são os que têm o carinho das pessoas. Os homens e as mulheres precisamos de gratificação na vida, mas não podemos confundir a gratificação com uma conta-corrente. A alma e o carinho não se depositam na conta-corrente. E é este o caminho da felicidade humana: ser útil aos seres fracos, aos que têm dificuldade; lutar contra a injustiça, não se cansar de lutar como um Dom Quixote ao longo da vida. Não é lutar para conquistar um prêmio, mas trilhar um caminho lindo, porque o final é o próprio caminho em que se passa o bastão para que outro o leve. Isso é uma vida com conteúdo, porque depende da sua decisão e não de uma decisão imposta por outros.

Não concordem comigo. Pensem, quando forem embora, e ponham a cabeça no travesseiro. Há dois caminhos: o que você pode escolher e o que a realidade do mercado te impõe. Você pode ir trabalhar e poderá ser, dentro de 40 anos, um aposentado poderoso de uma empresa multinacional, e terá trocado de carro a cada dois anos, e não vai faltar para seu filho nada que faltou para você. Mas você não terá tempo de dar um beijo nele e de passear com ele pela praia, falando com ele como um homem velho fala com um homem que está surgindo. Essa é a diferença. Provavelmente você terá todos as geringonças materiais, mas será um estranho para seu filho e para seus amigos. E seu filho terá boas roupas, boa comida, mas terá sido criado na solidão. Vocês estão começando uma etapa da vida em precisam tomar decisões. Não espere que um governo ou partido mande em você. O que está em jogo é a sua consciência, a sua capacidade de discernimento, e de ser independente ou não. A hora da solidariedade é também a hora da responsabilidade com o compromisso social. A juventude passa, mas as causas nobres são eternas.

RESPOSTAS ÀS PERGUNTAS

Os valores de nossa civilização estão em crise. Esta etapa do capitalismo não pode gerar puritanos. Ela gera corrupção. Não é uma idade de aventura. É uma idade de sepultura. Portanto, naturalmente, estão caindo formas ancestrais. Inseriram nas repúblicas usos e costumes ainda não nobiliárquicos, ainda feudais. Não viram o tapete vermelho, não viram o desfile com cornetas, não viram que os presidentes são rodeados por uma corte que parece uma monarquia. E o problema não são os presidentes: o problema é toda a corte. [gritos de “Fora, Cunha!” e “Não vai ter golpe!”]

Não me meto no que acontece no Brasil], porque não me corresponde, mas tenho de ser claro: aventuras com fardas de milicos? Por favor... Golpe de Estado? Por favor... Já vimos esse filme muitas vezes na América Latina e não foi boa coisa. Esta democracia não é perfeita porque nós não somos perfeitos, mas é preciso defendê-la para melhorá-la, ao invés de sepultá-la!
[gritos de “Não vai ter golpe!”]

Concordo. A América do Sul está bastante convulsionada, mas devemos ter cuidado para não atribuirmos responsabilidade só aos outros. É claro que a direita luta pelo lado dela! O problema são as oportunidades que nós damos a ela. Quero dizer com isto que não podemos andar pela vida com os valores deles. Os valores deles, da extrema-direita, são deles. Nós não precisamos de uma casa de luxo, um balneário de luxo, carro de luxo, hotel de luxo. Insisto: temos que viver com os valores da maioria do nosso povo. Se confundirmos vencer na vida com acumular riqueza, estamos do lado deles sem nos darmos conta. Mais claro: não se trata de odiar quem tem riqueza, trata-se de localizar cada um em seu lugar. Se você gosta muito de dinheiro, dedique-se ao comércio, à indústria, a fazer dinheiro, mas não se meta na batalha política, porque o político precisa ter carinho pelas pessoas. Precisamos de gente que tenha capacidade de gerenciar a economia, mas não precisamos que os apaixonados pelo dinheiro ditem o rumo político. Isto tem de estar muito claro, porque, do contrário, damos oportunidade ao golpismo de direita. Sabem por quê? Porque as pessoas param de acreditar em suas ferramentas naturais que são os partidos progressistas de mudança. E, ao pararem de acreditar, perdem a confiança, e quando perdem a confiança, não resta nada além do “cada um por si”, e isso é o mundo da fera.

Os homens e as mulheres devemos perdoar os erros dos outros, porque somos pecadores. O que não devemos tolerar é a mentira dos que traem nossa fé. A crise que temos na América é de confiança, mas temos que aprender que a mesa deles é uma, e a nossa mesinha é outra. Eles precisam de muita coisa: confeitaria, alimentos caros, carros caros, roupas caras, mas nós não precisamos de luxo, podemos andar de Fusca. Portanto, não temos preço. Portanto, se não temos preço, somos conseqüentes com os interesses do nosso povo. É por isso que devemos lutar. Há uma disputa moral, ética. A economia, até Adam Smith, se ensinava e se praticava junto com a filosofia e a ética. Com os estudos dos efeitos do mercado na economia, tentou-se separar a economia. Não se pode separar a economia da ética e da filosofia. A economia política é una! Se você não tem coração, é porque seu sentimento está no bolso.

O problema mais grave da América Latina é a crônica desigualdade que tende a multiplicar-se. A economia pode crescer, mas a pobreza também cresce, sobretudo onde não existe um Estado forte que se preocupe em mitigar a injusta distribuição do mercado. Um Estado forte precisa ter duas coisas: responsabilidade política solidária e recursos. Estes dependem da política fiscal e, na América Latina, esta faz os ricos pagarem muito pouco. É preciso entender que um Estado mísero, sem recursos, não pode promover política social com eqüidade na educação, na saúde, na moradia. Os setores acomodados da sociedade precisam entender que quem tem mais deve pagar mais. E isso de política fiscal perversa é crônica na América Latina.

Olhem os países que estão melhores socialmente e verão que, em todos eles, a carga tributária é enorme. Isso não quer dizer que somente altos impostos levam ao desenvolvimento. Este depende da forma como gastamos e investimos o dinheiro. Essa é outra história, mas não se pode melhorar a educação, por exemplo, sem dinheiro. Basta o dinheiro para melhorar? Não, mas se não tem dinheiro, não se melhora. Acreditem.

Mas, então, qual é o limite da pressão fiscal? O limite da pressão fiscal é a arte mais fina da política. Mais claro: se você encurrala [o empresário] com impostos que não lhe convém trabalhar, ele foge, e depois, em lugar de ter mais, você tem menos, apesar de ter uma causa nobre. Mas se a eficiência empresarial decorre de impostos privilegiados, em vez de ter empresários, você tem parasitas. Essa é a questão. Não há nenhuma receita de bolo que defina isso. Essa é a arte da política.

E eu defendo que a educação e a cultura são instrumentos imprescindíveis para o desenvolvimento. A capacitação técnica, ainda mais. Mas isso não basta. Precisa-se também da política adequada. Nenhum país era mais culto e tinha mais avanço científico que a Alemanha da II Guerra Mundial e fez o que fez. Para aumentar a eficiência da barbaridade, o conhecimento também é muito importante. Ou seja, o modelo de política adotado a longo prazo é decisivo. Por ser gregário, o homem é um animal político, como afirmava Aristóteles. Quem desprezar a política não entende que a política é, acima de tudo, o esforço social para melhorar a sociedade. Isto não quer dizer que eu esteja convidando vocês para atacarem, se quiserem lutar pela liberdade.

Não vim ao Rio de Janeiro para me reunir com um montão de jovens (que são um tesouro) para dizer somente o que podem gostar ou entender. Tenho que assinalar o caminho necessário para o futuro. Se a maioria da juventude inteligente da América Latina não tiver a coragem de lutar por um mundo melhor, nossa América Latina continuará atomizada em países e, portanto, enfraquecida.

E aqui vou à segunda questão: o mundo está se reagrupando em unidades gigantescas. O mundo da cultura nacional, tradicional que conhecíamos está ficando para trás. A Comunidade Econômica Européia está aí com suas nacionalidades diferentes, com suas línguas diferentes, com suas histórias diferentes, mas está criando uma fabulosa unidade de capital, de técnica e de massas. Os Estados Unidos, já sabemos o que significa. E tem, às suas costas, uma espécie de terra vazia prometida pelo Canadá. E tem a enorme vantagem de suas universidades com uma capacidade de pesquisa que o coloca, em muitas áreas científicas, em vários pontos adiante. Eu não me compadeço com a idéia de que [os EUA] vão cair como uma planta podre. Não acredito nisso. Do outro lado, a China, o mais antigo estado nacional, que já sabemos o que significa e o que vai significar para o mundo que virá. Ainda, na retaguarda, está a Índia. Vocês acreditam que os latino-americanos, sem uma voz comum, que identifique nossos interesses mais profundos, vai ter representação nesse mundo? Vocês acreditam que países mais gigantescos, como o Brasil, ainda não perceberam que estão chegando tarde e que, portanto, precisam do apoio de toda a nossa América Latina para ser alguém nesse mundo de colossos?

Eu não vou estar vivo, garotos, nesse mundo, mas a maioria de vocês vai. Ninguém disse que esse mundo vai ser mais generoso. Ai dos fracos! E, para deixar de ser fraco, não há outro caminho que não tentar juntar-se com nossos iguais. E com quem nós latino-americanos vamos nos juntar, se não nos juntarmos entre nós? Até quando eles vão levar nossos melhores cérebros? Até quando nossas universidades vão estar atomizadas se não formos capazes de juntar a inteligência latino-americana, ter nosso próprio sistema de pesquisa, sermos proprietários de nosso próprio conhecimento? Qual é nosso destino? Sermos compradores de conhecimento de ponta, como até agora? A batalha pela liberdade será também no campo da pesquisa! Isso precisa estar bem claro.

As multinacionais olham dentro de nossas universidades e levam os mais brilhantes, o mais rápido que podem e pagam muito mais do que nossas sociedades podem pagar, e com isso levam a nata do mundo. Até quando? Então é preciso pôr tudo isso em cima da mesa. Sei que o MERCOSUL tem um monte de defeitos. Mas ai de nós se ele não existisse. Não é questão de jogar o bebê fora junto com a água do banho. É preciso lutar por um MERCOSUL muito melhor, muito mais complementar e é preciso estar ao lado de todos os movimentos de unidade existente na América Latina. Não é separando que vamos vencer!

O Brasil, por ser grande, tem uma velha ilusão de ser uma grande potência... sozinho. Chegou tarde, irmão – dizem os imperialistas. Chegou tarde! A sorte não está em cima, a sorte está embaixo! Nosso tesouro, nosso grande mercado, são os pobres de nossa América Latina que precisam ser incorporados à civilização. Esta é a disputa. A disputa é para dentro, por todos os que estão oprimidos, pelos povos indígenas, pela identidade de todos. Juntar-se não é perder identidade. Ao contrário, é a única maneira de garantir a identidade dos fracos. Então, por favor, garotos, levantem a cabeça. Vocês não têm por que deixar de serem brasileiros. Mas têm de ser latino-americanos e humanos.

Queridos, a vida é um livro aberto. Eu tive que viver muitos anos de solidão. Não por ser herói, mas porque me pegaram, me faltou velocidade, nada mais. E fiquei oito anos sem nenhum livro. E tive de pensar. Tive de buscar dentro de mim a força que não podia ter fora. E peço a vocês: conversem com o que vocês tem dentro. Estamos numa época em que estamos conectados com o mundo, mas não se desconectem do que vocês tem dentro. Aprendam a falar consigo mesmo em profundidade, sem piedade. Não procurem só fora: tem que procurar dentro de vocês mesmo, porque vocês tem um universo. Vocês tem de se aproximar de vocês mesmo, com seus erros, suas frustrações, para poder gostar um pouco mais dos outros. Quem não tenta conhecer a si próprio, não consegue conhecer ninguém.

Passei a vida lendo. A cada três, quatro anos, voltava a ler Dom Quixote de La Mancha. E leio tudo que posso da História da humanidade. A esquerda e a direita não começaram com a Revolução Francesa. A humanidade sempre teve uma cara conservadora e uma cara solidária. Muito antes da Revolução Francesa, tivemos pensadores. Talvez a humanidade precise de um traço de estabilidade e isso a cara conservadora do homem cumpre, mas a humanidade também precisa de mudança, porque o tempo não tem piedade e passa. A História humana se move nesse vai-e-vem, mas ambas as posições têm doenças patológicas. A cara da mudança pode transformar-se em infantil e confundir desejo com realidade. Pode não ver a realidade porque só usa os óculos do desejo. A cara conservadora pode cair no reacionário, no golpismo, na violência. Por isso, é importante conhecer tudo que se possa da aventura humana em todas as partes da Terra.

Mas, antes, é preciso conhecer a fundo a dolorosa história do seu continente, começando pela do seu país. Vocês não podem operar no sentido político profundo do porvir, se não conhecerem a história do seu país. Procurem conhecer de onde viemos, para poder sonharem com o futuro.

Acho que as mulheres não precisam de presentes concedidos pelos homens. Elas vêm, pelo menos no meu país, ganhando seu lugar por conta própria, sem presentes. Lá, formam-se 100 mil profissionais por ano, 75% são mulheres. No parlamento, acabamos de aprovar 30 procuradoras de justiça – nenhum homem, todas mulheres. Daqui a pouco, nós homens é que vamos ter de pedir cotas. Por quê? Porque as companheiras são menos preguiçosas que os homens e terminam a carreira. As mulheres vão conseguir os direitos adiados, não por concessão, mas por imposição de sua capacidade.

E isso é uma evolução natural do peso do trabalho. Na medida em que o trabalho vai virando cada vez mais intelectual, vão desaparecendo as distâncias que podiam existir entre o homem e a mulher. Há uma onda de preconceito ainda muito grande. É no mundo empresarial que está mais entranhado o sentido mais conservador da espécie. Há poucas mulheres capazes à frente das empresas, mas não tenho dúvida de que o avanço das mulheres é um processo irreversível. Elas só precisavam de oportunidade para demonstrar a capacidade que têm. Não acredito em igualdade de gêneros. Acredito na igualdade de direitos. Por sorte não somos iguais, porque não valeria a pena viver neste mundo se fôssemos iguais. E não achem que digo isso por galanteio. Sou absolutamente consciente. Os homens sozinhos são inconvivíveis. Somos um desastre completo. Embora não nos demos conta, andamos pela vida precisando de uma espécie de mãe que sempre nos organize e nos conduza. Mas, como somos machistas por cultura, não gostamos de reconhecer isso. Em geral, uma casa nas mãos de um homem é um desastre. Por isso, acho que é preciso compartilhar e aprender a compartilhar.

Podem perguntar o que eu faço com minha mulher que eu respondo: lavo a louça, quando posso, e tento ajudá-la em tudo que posso e convivemos e somos felizes. Ela tem 70 anos e eu tenho 80. E tentamos construir um mundo em paz e em tranqüilidade. Os seres humanos precisam de refúgio e o refúgio é o ninho. Nunca se esqueçam. É preciso cuidar do ninho, mas, para cuidar do ninho, é preciso cuidar da companheira, acima de todas as coisas. E quando o ninho se quebra, é preciso chorar um dia e volver e começar a construir outro ninho e, assim, até o Juízo Final.

Queridos, fui um freqüentador de prisões, estive entregue a quatro delas e fugi de duas. Dão pouca importância às prisões. É uma caldeira da cultura. O idioma muda nas prisões. Desde embaixo. Os mais desprezados da sociedade monitoram as mudanças idiomáticas. Até pouco tempo atrás, dentro das prisões também havia valores. Não achem que isso é simples. Até no mundo do crime havia valores, o que quer dizer que havia coisas que não se podia fazer. A inclusão do tráfico de drogas como metodologia gerou um câncer de violência que vai muito além do tráfico de drogas e nos botou neste mundo contemporâneo onde parece que a violência não tem limites - não tem limites morais. E nunca tínhamos conhecido isso. “Você quer prata ou chumbo?” Esta é a alternativa. Eu acho que essa é uma das piores ofensas à civilização humana que tivemos até hoje e que todo esse arsenal merece ser repensado.

Todos sabemos que as prisões deveriam ser reabilitadoras dos seres humanos, particularmente dos jovens, mas a realidade orçamentária e com os meios de dispomos, a prisão não só não ajuda a superar as deformações que se trazem, mas, em geral, ajudam a multiplicá-las, pelo menos na América Latina. Ninguém quer saber de prisões, elas são o mundo fétido que está aí. Ninguém quer suportar as trancas da sociedade da qual somos parte. Portanto, não creio que a multiplicação das penas ajude. As prisões, em boa parte da América Latina, são universidades do crime. E ainda queremos prolongar mais e mais essa penúria! Qual é a resposta? Ver os lugares onde estão acontecendo coisas positivas e coisas negativas e fazer um balanço. Não é nos Estados Unidos, que tem recorde de presos per capita e os crimes se multiplicam - os crimes dos pobres porque os cheios de dinheiro não são presos. Mais claro, companheiros: as leis podem ser as mesmas, iguais para todos, mas, na hora de aplicar, não há igualdade; há uns mais iguais que outros.

Então, não creio que aumentar as penas resolva o problema. O homem da rua existe, pensa e sente e quando o escracham, quando o roubam, quando o tratam mal e quando pisam nele, e quando o pegam com uma menina e o acusam disso e daquilo, ele está cheio de ódio e rancor. É preciso entender o homem da rua. E ainda há os que crêem, ingenuamente, que o assunto se resolve aumentando as penas. O homem da rua também tem sentimentos, e o homem da rua é nosso. Lutemos por ele. Ele compõe a maioria. Por isso, lutem, lutem pelo melhor, mas entendam qual é a realidade e não se desmoralizem, não abaixem as bandeiras. Os únicos derrotados são os que param de lutar.

Einstein dizia: “se você quer mudar, não pode continuar fazendo a mesma coisa”. No meu país, pequeno, e socialmente bastante adiantado em termos legislativos, não conseguimos vencer o tráfico (a cada três pesos, um está relacionado com a droga ou com o tráfico ou com crime cometido para comprar droga). Apesar de reprimir o tráfico, estávamos perdendo a guerra. Decidimos afrontar o mercado, ou seja, pegá-lo na taxa de lucro. E isso não é legalização, é regulação.

Entendamos: o mercado está em 150 mil, talvez um pouco mais. Não tem outra alternativa além de comprar no mundo clandestino. Não há outro lugar para comprar. Está dado ao tráfico. Vendem bom, ruim, regular, sacaneiam. Mas esse é o mundo real. Nós não cremos que nenhum vício seja bom – exceto o do amor. Todos os demais são ruins. O tabaco é ruim, e mesmo assim fumamos. A bebida é ruim, e mesmo assim bebemos. Se eu tomo dois uísques por dia, talvez não seja bom, mas eu agüento. Se eu tomo uma garrafa, têm que me internar; sou um alcoólatra. Mas como podem me internar, se estou no mundo clandestino? Este é o caso dos vícios. Se eu dou uma cota semanal ao sujeito e ele quer mais e mais, e eu detecto isso, então me dou conta de que tenho de atendê-lo. Mais claro: se o consumo é permitido, posso atendê-lo a tempo, porque posso identificá-lo e conhecê-lo. Se o mantenho clandestino, o viciado vai continuar afundando no vício e, quando puder reconhecê-lo, já será tarde, porque ele estará em alguma prisão por aí. Já será irrecuperável. Essa é a tese. Não é legalização. Não é dar força, “Consuma!”, “Viva a boemia!”, “Viva o fumo!”. Não! É uma praga! Mas como seres humanos, somos assim. Vamos lidar com a praga! Não queremos fazer como fizeram os ianques na década de 30, que declararam a Lei Seca, proibiram e veio Al Capone. Foi pior que nunca, porque vendiam álcool de madeira. Bom, isso é o que estamos fazendo com as drogas. Além disso, tem mais: o ilegal, o proibido, atrai mais o jovem. Se a droga é posta à venda, como qualquer produto comum, você tira a poesia e o mistério do proibido.

Dará resultado? Não sabemos. O que sabemos é que o que vínhamos fazendo era gastar dinheiro com um contingente policial cada vez maior, ter uma montanha de custos, e cada vez ter mais gente que toma goela abaixo. Então levantamos a bandeira do direito de buscar um caminho diferente. Por que o Uruguai faz isso? O Uruguai tem antecedentes disso. Em 1914, o Uruguai reconheceu a prostituição, organizou-a legalmente, impôs os direitos sociais das mulheres que exerciam essa profissão. Além disso, nacionalizou a produção de álcool de alambique. Durante 50 anos, só quem produzia bagaceira, cachaça, uísque, conhaque, etc., era o Estado. Fazia de boa qualidade, cobrava caro e atendia à saúde pública. Não pensaram na Lei Seca dos Estados Unidos. O Uruguai estabeleceu também, por essa mesma época, o divórcio pelo pedido apenas da mulher e inventou uma universidade feminina, para que as famílias conservadoras daquela época aceitasse mandar as meninas para estudar. Havia patriotas que diziam “as mulheres não devem estudar porque vão perder os doces costumes do lar”. Isso também existia. E houve antecessores, nossos bisavós, que tiveram a audácia de enfrentar os preconceitos da sociedade. Eu podia continuar relatando muitos fatos semelhantes.

Devido a estes antecedentes, o Uruguai teve a coragem de fazer uma proposta distinta do que é feito covardemente nos Estados Unidos, em que há estados onde, com a lorota do uso medicinal, usa-se um receituário cheio de assinaturas de médicos, que são pagas, para comprar maconha. Não! Achamos que isso é cinismo. Nós vamos pelo caminho dos fatos. Levamos porrada de todos os lados, mas pelo menos saibam como é a coisa.

Companheiros: dizem que Deus era muito poderoso e, após fazer o mundo, teve que descansar no domingo. Imaginem um velho de 80 anos, que não é Deus. Temos que terminar, dando um abraço de coração em vocês. Para mim, a vida começa com vocês. E vou me despedir brindando aqueles de vocês que levantarem as bandeiras quando nossos ossos já não puderem mais levantar. Obrigado.
Tradução de Joaquina Lacerda Leite

FONTE: Fala de Pepe Mujica na Concha Acústica da Universidade Estadual do Rio de Janeiro em 28 de agosto de 2015.

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