Franco Adailton
"Traficantes não terão êxito se houver inclusão social", considera Carl Hart |
Primeiro neurocientista negro a se tornar professor titular da universidade de Columbia, em Nova York (EUA), autor do livro Um Preço Muito Alto: a jornada de um neurocientista que desafia nossa visão sobre as drogas, o pesquisador norte-americano Carl Hart, 48, deixa, nesta quinta-feira, 3, Salvador, após cumprir três dias de uma agenda de compromissos com a Iniciativa Negra por Uma Nova Política Sobre Drogas (INNPD) e o governo estadual, por meio das secretarias da Justiça e Direitos Humanos e da Segurança Pública. Nessa entrevista exclusiva ao A TARDE, na segunda passagem pela capital baiana, Hart fala sobre o trabalho que vem desenvolvendo em relação à política mundial antidrogas (na visão dele "uma política enganadora").
Quais são suas principais ideias sobre a política
de drogas no mundo?
É uma pergunta ampla. Escrevi um livro inteiro
sobre isso. As políticas de drogas são diferentes a depender de onde se está.
No Brasil, o principal problema é que as pessoas estão sendo induzidas ao erro,
enganadas, em relação às drogas na sociedade. Dizem à população que as drogas
são um problema em si, quando as questões estão ligadas à própria estrutura
social, discriminação racial, pobreza, falta de educação, falta de inclusão em
certos grupos. O que há, essencialmente, é um apartheid. E culpam as drogas,
por meio de campanhas contra o crack, como se o crack fosse o problema. O crack
apareceu no Brasil por volta de 2005, a pobreza está desde sempre, assim como a
violência e o crime. Atribuir essas questões à existência das drogas e dos
traficantes é desonesto. Sugiro às pessoas, principalmente aquelas que estão
sendo colocadas nas cadeias ou mortas pela polícia, que se levantem e digam:
"Essa política antidrogas é besteira!".
A respeito da defesa do sr. da legalização ou
descriminalização das drogas nos EUA, o mesmo pode ser aplicado no Brasil?
Claro. Seja legalização ou descriminalização, o que
quer que funcione na sociedade seria bom. Devemos perguntar quais questões
queremos resolver: se estamos preocupados com traficantes, teremos que pensar
sobre a legalização, pois tem a ver com o comércio. Por outro lado, traficantes
não terão êxito se houver inclusão social. Até descobrimos como sermos mais
inclusivos, sempre teremos problemas com o tráfico. Onde houver drogas e
pessoas terá tráfico. Mas, enquanto pessoas não forem incluídas, haverá
economia clandestina.
O sr. crê que o uso de drogas passa por um problema
de saúde em vez de polícia?
Depende muito. Para a maioria das pessoas que usa
drogas não se trata de um problema de saúde, embora possa se tornar. Pense, por
exemplo, no uso do automóvel. Muita gente dirige de forma imprudente e acaba
tendo problemas, se envolve em acidentes, o que acaba se tornando um problema
de saúde. Mas a maioria da população usa o automóvel de maneira segura e tal
uso não se configura um problema de saúde pública.
Quais diferenças o sr. percebe na política
antidrogas nos EUA e Brasil?
Recentemente, escrevi um artigo mostrando como a
política antidrogas dos EUA foi exportada para o Brasil. É uma política criada
para subjugar a população negra. Como resultado, lá, um a cada três homens
negros estão sujeitos a passar algum tempo na cadeia. É uma estatística
terrível. O que contribuiu para isso foi uma política de combate ao tráfico,
sobretudo de cocaína e crack, criada em 1986. Agora, estamos revendo essa
política, uma vez que percebemos que está errada e inapropriada. O que está
sendo feito no Brasil, nos dias de hoje, é basicamente a mesma coisa que
adotamos nos anos 1980. Portanto, podemos esperar os mesmos resultados: pessoas
negras, particularmente homens, enchem as prisões. Isso quando não são mortas
pela polícia.
O sr. foi criado em uma comunidade pobre de Miami.
Há alguma similaridade com nossas favelas?
Sim, financeiramente pobre, mas culturalmente rica,
em amor, em pessoas brilhantes. Não tínhamos muitos recursos financeiros, mas
tínhamos outros. Não é muito diferente das comunidades onde os negros daqui são
criados. Eu fui criado como um pobre, não preciso ver como é aqui para saber. Vi
a pobreza o tempo todo na minha vida. A favelas daqui, em termos de
arquitetura, são as piores que já vi. Já estive em inúmeros lugares, nas
favelas da África do Sul, mas as estruturas das casas no Brasil são realmente
ruins. Nos Estados Unidos, as pessoas são pobres, porém seus lares não são tão
desiguais. Há uma pobreza séria ocorrendo aqui.
Esse talvez seria um dos motivos pelos quais as
pessoas enveredam pelo tráfico?
As pessoas sempre perseguem as necessidades
básicas, não importa em qual sistema vivam. Elas precisam comer, morar,
precisam do mínimo de respeito. Quando não se tem isso, elas vão buscar em
outro lugar. De repente, vem alguém que oferece um 'trabalho' no tráfico ou
qualquer outra atividade, e essa pessoa simplesmente pega.
Temos um dilema na Bahia: a maioria dos policiais é
negra e educada para combater uma população predominantemente negra. Qual a
percepção do sr. sobre essa realidade?
Essa pergunta tem uns componentes notáveis. A
primeira coisa é que toda pessoa, de qualquer raça, tende a ser morta por um
semelhante dela. Por todo o mundo, não é incomum. Quando falamos de negros,
achamos que seria incomum, mas não é. Segundo, quando pensamos na polícia, é
uma organização que simplesmente faz o que a estrutura de poder quer que ela
faça. E a estrutura de poder, nesse caso, é branca. Não é como se a polícia
daqui se comportasse de forma anormal. Eles sabem a quem obedecem. É simples.
Por isso que estou tentando enfatizar que é um problema não haver lideranças
negras aqui. Por que, se houvesse, realmente poderia se traçar um panorama
sobre quais são os problemas da violência, de fato. Não é uma garantia de que
teríamos um entendimento por completo, até por que nos Estados Unidos temos
lideranças negras em inúmeros locais, mas eles são igualmente ignorantes. Eles
não entendem o que está acontecendo, enquanto outros são conscientes. Dessa
maneira, o fato de haver lideranças negras não é garantia de que tenham uma
leitura do contexto. Mas, certamente, essa presença aumenta as possibilidades
de compreensão desse quadro.
Para sustentar a proibição, políticos no Brasil
defendem que o sistema público de saúde não suportaria uma possível
legalização...
Provavelmente, é algo estúpido e errado. Eu realmente não ouço políticos, não são pessoas que devem ser ouvidas nesse assunto, mas pessoas que têm publicações nessa área, que têm evidências, informação. Políticos, geralmente, são idiotas e, nem penso neles.
Provavelmente, é algo estúpido e errado. Eu realmente não ouço políticos, não são pessoas que devem ser ouvidas nesse assunto, mas pessoas que têm publicações nessa área, que têm evidências, informação. Políticos, geralmente, são idiotas e, nem penso neles.
Muitos pela proibição do drogas dizem que a
maconha leva ao uso de outras substâncias. Quanto há de verdade nisso?
Em 1937, a ciência acreditava nisso. Mas não
estamos mais em 1937. As evidências, hoje, são claras e dizer isso é de uma
estupidez imensa. Eu fico surpreso que a população permita que esse tipo de
pessoa a represente.
E quanto ao álcool?
O alcance é mais amplo e não é nada inesperado que
mais pessoas tenham mais problemas em decorrência do consumo do álcool. Volto à
comparação com dirigir veículos: a maioria das pessoas que bebe o faz de
maneira segura. Quando consumido em doses moderadas, chega a ser associado a
benefícios positivos à saúde. Obviamente, se as pessoas bebem demais, em
excesso, elas terão problemas, assim como qualquer outra coisa consumida
imprudentemente. Uma das consequências do uso abusivo, por exemplo, é a
inclinação que as pessoas têm a praticar sexo sem proteção. Fora isso, está
tudo bem. Em qualquer sociedade ou qualquer comportamento, potencialmente
haverá problemas de todos os tipos. É algo inerente ao ser humano. Se formos
pensar que tudo é nocivo, que podemos controlar tudo, a gente não vai nem
comer. Não temos como evitar tudo que faz mal, caso contrário, a gente não
vive.
Salvador é a cidade com a maior população negra
fora da África. Ainda assim, nunca tivemos um prefeito negro. Como o sr. vê
isso?
É algo vergonhoso. Percebo que há muito poucos
negros em posições de liderança. Por conta disso, penso que os negros daqui
deveriam protestar. Deveriam ser educados para dizer: 'Isso é
inaceitável!" Até que as pessoas tenham consciência disso tudo vai continuar
na mesma. Enquanto houver essa falta de inclusão, toda a conta vai ser
creditada às drogas. Há um apartheid silencioso acontecendo aqui.
O sr. acredita que o Brasil, assim como ocorreu com
Obama nos Estados Unidos, um dia terá um presidente negro?
Eu não sei se esse deva ser o objetivo primordial
do Brasil, por agora. Não faço ideia. Até porque, se você me perguntasse se eu
imaginaria que um dia haveria um presidente negro nos Estados Unidos, eu diria
não. No final, estaria errado. Não sou muito bom nessas especulações. Penso que
a população brasileira deveria se focar mais na igualdade, na inclusão dos
cidadãos no mainstream (posição de destaque). Assegurar que deve haver mais
negros com educação, moradia, empregos, na classe média. Penso que esse deva
ser o foco.
Durante a estada do sr. no Brasi houve algum tipo
de preconceito como um homem negro, sobretudo rastafári?
Não, porque eu não sou o típico negro comum, uma
vez que ando pelas ruas e as pessoas meio que me reconhecem. Nós deveríamos
andar pelas ruas e perguntar aos nativos daqui como eles se sentem. A visão
deles é mais importante que a minha, porque eles vivem aqui todos os dias.
Então, o que realmente aconteceu no Hotel Tivoli,
em São Paulo, na semana passada?
Nada. Absolutamente nada. Me disseram que um
segurança vinha em minha direção para me barrar, mas eu não vi. Pessoalmente,
eu não vi nada. As pessoas começaram a me pedir desculpas, sem motivo. Algum
repórter falou com outra pessoa e vimos no que deu. No final, eu fiz um vídeo
para explicar que não aconteceu nada. A notícia se espalhou como um vírus.
Sabemos que há um ressentimento quanto à discriminação racial aqui. Eu acho que
as pessoas se envergonharam por algo assim supostamente ter ocorrido comigo,
por eu ser um estrangeiro. Por isso, tentaram resolver rapidamente. Mas esse
fato não é o que deveria ser discutido, mas, sim, o racismo diário que acontece
na sociedade. Fico feliz que esse assunto esteja resolvido quanto a mim.
Fonte: Jornal A Tarde
Nenhum comentário:
Postar um comentário