A dona de casa Edite Rodrigues conta que
em São Francisco do Guaporé, cidade de 18 mil habitantes situada na divisa do
Estado de Rondônia com a Bolívia, a mais de 600 quilômetros da capital (Porto
Velho), até bem pouco tempo atrás, quando alguém ficava doente, tinha que ser levado
para cidades vizinhas. Ela deu este testemunho em São Paulo, no simpósio
"Programa Mais Médicos: Perspectivas e Opiniões”,
promovido pelo Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), em 11 de fevereiro de 2015.
Conforme relatou, antes deste programa
federal, o atendimento no posto de saúde era muito precário, porque tinha
equipe de atenção à saúde da família, mas não tinha médico. E, quando aparecia
algum por lá, disse, mal conseguia conversar com as pessoas doentes e seus
familiares, principalmente com aquelas mais humildes, de baixa escolaridade ou
analfabetas. "Hoje, o médico vai na comunidade, vai visitar, ver
criança nascer, atender criança de baixo peso. A gente consegue consulta até
para micose; e conversa com ele como se fosse amigo. Antes não, ele era uma autoridade
máxima".
No distrito de Albuquerque, zona rural de
Corumbá (Mato Grosso), também há novos vínculos entre profissionais de saúde e
a população. "Temos médico todo dia e não mais uma vez por semana. Antes,
quando a gente ia (ao posto), não sabia se ia ser atendido", conta a dona
de casa Nilza de Souza. "Minha mãe é cadeirante; o médico vai atender em
casa. Agora, temos duas pessoas em uma: um médico e um amigo. Então só tenho a
agradecer". Os laços, conforme o agente comunitário de saúde Joilson da
Silva, eram impossíveis há pouco mais de um ano, pois "Não tinha como
criar vínculo. Faltava médico; ninguém queria vir para cá, na zona rural, a 70
quilômetros".
Para a agente de saúde Iraci Vera dos
Santos, de São Francisco do Guaporé (Rondônia), a situação também não era
fácil. Diz ela: "É difícil andar sozinho, fazer nosso trabalho sozinho. E
a consulta era super rápida porque o médico não tinha tempo para nada".
"Agora, é possível acompanhar as famílias diariamente. Gestantes,
diabéticos, crianças, idosos. Hoje, acompanhamos hipertensos, acamados. Como é
difícil tirar e levar para o postinho quem não pode andar! Por isso a população
está adorando". Iraci torce para os médicos não irem embora tão cedo, já
que agora é possível fazer reunião com médicos, enfermeiros, demais agentes e
organizar o trabalho.
Também agente de saúde, Maria do Carmo
Santos Pereira, do município de Nossa Senhora das Dores (Sergipe), a 72
quilômetros de Aracaju, vê diversas melhorias com a chegada de médicos. "Antes,
eles chegavam ao posto às 9h, 9h30, e queriam ir embora ao meio-dia",
conta. "Hoje, o médico vai às casas porque tem de conhecer a família.
Acorda às 5h para ir para até a zona rural,
muito distante de tudo. A gente chega lá
às 6h30 para a ginástica das idosas. Todas estão felizes, vaidosas. Fizeram até
desfile. Secaram o cabelo, fizeram maquiagem. Foi muito bonito mesmo". À vontade,
brinca: "Espero que os médicos fiquem por muito tempo. Pelo menos até eu
me aposentar".
Na mesma cidade, há outra certeza:
"Foi Deus que colocou o doutor Rodolfo aqui", acredita a sertaneja
Maria da Graça Lima, 88 anos. O médico, de acordo com ela, "vai na casa do
povo, visita todo mundo, recebe a gente bem". E garante: "Eu vivia
doente das 'perna', não conseguia nem abaixar, apanhar nada no chão. Mas graças
a Deus e aos remédios do doutor, estou muito satisfeita. Não sei como vamos
ficar se um dia ele se for", diz.
A fala da gente simples guarda semelhança
com a de um doutor, o orientador de mestrado e doutorado do Departamento de
Medicina Preventiva da Unifesp Elisaldo Carlini. Aos 83 anos, ele rememora os
tempos de infância no interior paulista, no pequeno município de Pirajá. Numa
infância sem médico, como costuma dizer, teve boqueira, que era queimada, e
bronquite, tratada com tatuzinhos de jardim, que sua mãe colocava num paninho que
ele carregava pendurado no pescoço. Cinco dias depois, quando morriam e já
fediam, eram substituídos por outros vivos. A solitária era cuidada com mastruz
com leite. Mordido por um cachorro louco, contou com soro antirrábico, que veio
de cidades vizinhas, trazido de trem e depois a cavalo. E teve ainda muita
sorte de chegar a tempo a outra cidade maior e conseguir curar o tracoma,
doença inflamatória dos olhos, que poderia deixá-lo cego.
"O que vivi há mais de 80 anos ainda
é vivido por metade da população brasileira, sobretudo a mais pobre, que vive
pelo interior desse país sem assistência. É preciso maior compreensão sobre a
grandeza da profissão do médico, que é mais digna quando bem
exercida".
Carlini integra a comissão organizadora do
simpósio realizado pela Faculdade de Medicina da Unifesp, com apoio da
Organização Pan-Americana da Saúde, para discutir com estudantes, médicos,
agentes comunitários de saúde, gestores municipais e usuários do sistema
público os avanços, desafios e as perspectivas a curto, médio e longo prazo do
programa federal, que já levou 14.462 mil médicos a 3.785 municípios e 34
Distritos Sanitários Indígenas – e que, atualmente, atende a 50 milhões de
pessoas.
Outras vertentes do programa são o
investimento de R$ 5,6 bilhões para construção, ampliação e reforma de Unidades
Básicas de Saúde (UBS), e R$ 1,9 bilhão para construir e ampliar Unidades de
Pronto Atendimento (UPAs). De acordo com o Ministério da Saúde, das 26 mil UBS
que tiveram recursos aprovados, 20,6 mil (79,2%) estão em obras ou já foram
concluídas, e 363 UPAS, de um total de 943, já foram concluídas.
Também pelo programa há a reestruturação e
ampliação da formação médica no país, que até 2017 deverá abrir 11,5 mil novas
vagas de graduação em medicina e 12,4 mil vagas de residência médica para
formar especialistas, até 2018, em saúde da família. O Ministério da Educação
já autorizou a abertura de 4.460 novas vagas na graduação, sendo 1.343 em
instituições públicas e 3.117 em faculdades privadas, principalmente em
localidades do Norte e Nordeste, com escassez de profissionais.
"Espero que nossos brasileiros
estudem mesmo para serem médicos e que, enquanto isso, possamos continuar esse
programa com outros médicos, mesmo quando os de agora forem embora e vierem
outros", diz Edite Rodrigues, de São Francisco do Guaporé.
Mais do que um encontro de avaliação da
política por coordenadores do programa no Ministério da Saúde e do Ministério
da Educação, o encontro foi um espaço para que brasileiros de diversas regiões
do país, como a dona Edite, pudessem falar sobre a diferença que faz em suas
vidas ter um médico para consultar tanto na hora de resolver um problema de
saúde como aprender a evitar doenças. Convidados e trazidos a São Paulo pela
comissão organizadora, eles dividiram a mesa de debate
com agentes comunitários de saúde e
médicos brasileiros e estrangeiros participantes para contar o significado do
acesso ao atendimento médico.
Em suas participações, os médicos, mais
familiarizados com entrevistas e palestras, falaram, principalmente, sobre os
projetos construídos com as equipes das unidades de saúde para estreitar o
vínculo com a população atendida, que, segundo eles, já vêm trazendo resultados
positivos.
Entre eles, a confiança da população, que
passa agora a procurar mais os centros de saúde e a seguir tanto os tratamentos
prescritos como as recomendações para evitar problemas de saúde, como a prática
de exercícios físicos e alimentação adequada, com mais cereais, verduras,
legumes, frutas, carnes e laticínios frescos, em vez de frituras em excesso,
comidas gordurosas e açucaradas – como, em geral, são os produtos
industrializados.
Fonte: Pátria Latina. Acessado em 25/02/2014.
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